Li em algum lugar
que o escritor português António Lobo Antunes sofre de problemas de
audição. Seu avô materno, José, era surdo. Ainda moça, sua mãe,
Maria Margarida, também passou a não escutar bem. Lobo Antunes
convive, sem dramas, com as limitações que a genética lhe impôs.
Da falta, faz combustível.
As vozes que
vacilam no exterior se multiplicam em sua mente. Seus romances são
um grande vozerio. Essas falas nos açoitam, de novo, em Que
cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (Alfaguara). Vozes
que lutam entre si, que se combatem, como se disputassem, a cada
linha, seu lugar na página. António Lobo Antunes, o homem, é só o
campo de batalha.
A experiência na
guerra foi decisiva em sua formação. Em 1971, embarcou para Angola,
onde lutou a guerra colonial. De volta a Lisboa, dois anos depois,
era outro homem. “A guerra me obrigou a relativizar tudo”,
explicou. “Era tão simples morrer, e morríamos em plena saúde.”
Três anos se passaram e começou a escrever Memória de elefante,
seu primeiro romance.
Finda a guerra, o
combate se transferiu para o cenário interior. Os romances de Lobo
Antunes capturam vozes que se desafiam. Aproveito uma ideia de José
Saramago – seu mais notório desafeto: “Escreve-se com tudo o que
se tem dentro, só com o que se tem dentro”. Lobo Antunes escreve
com sua surdez (que se torna vozerio) e com suas feridas de guerra
(que se tornam combustíveis).
Mais uma ideia de
Saramago: “Cada um de nós só pode escrever seus próprios livros.
Qualquer livro que eu escreva não tira o lugar de nenhum outro
livro, se limita a ocupar o seu próprio lugar”. É a verdade. Eça
não é superior a Machado, ou Pessoa superior a Drummond
simplesmente porque Eça não é Machado e Pessoa não é Drummond.
Agora lembro onde
li a história da surdez de Lobo Antunes: em uma longa entrevista a
María Luisa Blanco (Conversas com Lobo Antunes, editora Dom
Quixote, Lisboa, 2001). Ali, ele próprio dá razão a Saramago. Diz:
“Não se inventa nada, a imaginação é a maneira como se arruma a
memória. Tudo tem a ver com a memória”. A memória condena Lobo
Antunes a ser Lobo Antunes e condena José Saramago a ser José
Saramago. Ninguém pode ser mais do que é.
As vozes dos
personagens de Que cavalos são aqueles..., emitidas por
membros de uma mesma família, comprovam isso. O romance (parece, mas
nada é seguro em seus livros) começa na voz de Beatriz, a filha que
sobreviveu a dois casamentos infelizes. “Que estranho viver, como
se faz, começa-se por onde, em que capítulo”, ela desabafa,
enquanto reconstitui a história da mãe morta.
Beatriz idealiza os
livros, que seriam nítidos e coerentes. Adoecido da mesma ilusão, o
leitor de Lobo Antunes sente o golpe. Que estranho o livro que leio!
O que fazer dessas vozes que se misturam? Como separá-las? Como
ordená-las? E, no entanto, é assim, nessa ventania de palavras –
e não na planície límpida e seca da retórica – que vivemos.
Quem fala? Rita, a
filha que um câncer matou na juventude, ou Ana, a que se entregou às
drogas? João, o filho que esconde sua homossexualidade, ou o velho
pai? Vozes e mais vozes que se enroscam e, em vez de esclarecer, nos
ensurdecem. Que estranho ouvi-las.
Lobo Antunes
lembra, a respeito, uma sábia reflexão de Kipling: “Demasiadas
palavras, há sempre demasiadas palavras!”. A constatação não o
liberta do excesso. Escrito entre 2008 e 2009, seu novo romance tem
334 páginas. Que terminam por ser 668, ou quem sabe 1.336 – de tal
forma ele nos obriga a ir e voltar, ir e voltar. Lemos, relemos, e
nunca basta.
Quando lhe
perguntam de que tratam seus livros, Lobo Antunes gosta de recordar
uma ideia do escritor Francisco Manuel de Melo: “O livro trata do
que está escrito nele”. As palavras (e só elas) geram palavras.
São palavras, ainda, que trazemos grudadas na memória – palavras
que procedem, talvez, de antes de nosso nascimento. Nelas existimos,
pensava Manuel de Melo. Por isso somos humanos.
Lobo Antunes sabe
que a literatura não é explicativa; nem decorativa. Não “ilustra”,
não “exemplifica”, tampouco “ensina”. As palavras se limitam
a roçar o mundo. Em dado momento de Que cavalos são aqueles... , a
narradora, Beatriz, muito irritada, reclama de seu autor: “As
palavras avançam depressa e o papel não chega, eis o António Lobo
Antunes a saltar frases não logrando acompanhar-me e a afogar num
tanque os gatinhos do que sinto para se desembaraçar de mim”.
Exprimir não é dar conta. A língua é mais estreita que a
experiência.
Volta e meia, um
personagem se pergunta: “És tu?”. A dúvida acompanha o leitor
até a última página. Como em um interurbano dissolvido em linhas
cruzadas, nos perguntamos: afinal, quem fala? A voz de António Lobo
Antunes, o homem, se mescla às vozes fictícias e se torna, ela
(ele) também, ficção.
Lá pelas tantas,
ele escreve: “Este livro é o teu testamento, António Lobo
Antunes, não embelezes, não inventes, o teu último livro, o que
amarelece por aí quando não existires”. A ideia da despedida
percorre todo o romance, como um sinal (escandaloso) da estranheza de
viver. Tudo por um fio, sempre.
Em outro momento, é
o filho João quem ouve uma pergunta de seu autor: “Escrevo
assim?”. E ele, muito compenetrado, responde: “Escreva”. O
autor (Lobo Antunes) não está seguro do que faz. Como um
transmissor precário (um velho rádio, com chiados e
interferências), ele bem que tenta. Ficamos com o que consegue
fazer. Isso é um romance.
Em outro momento, é
o filho Francisco, o ganancioso, quem desconfia das palavras. No
escritório da família, ele inventaria os objetos. Encontra um que
parece uma estatueta ou um vaso. Não sabe ao certo o que é. “Com
a palavra estatueta e a palavra vaso sem sentido, descrevam-me o que
chamam estatueta e o que chamam vaso para me lembrar o que é”,
diz.
Ainda no fecho, o
romance trepida: “Não sei se tenho casa, mas é a casa que
regresso”. O romance (a estrada) acaba, mas a carruagem das
palavras continua a avançar. Ao concluir seus livros, repetindo a
frase célebre de Gogol diante de Almas mortas, Lobo Antunes
costuma pensar: “Sempre tenho a tentação de lhe chamar poema”.
José Castello,
in Sábados inquietos
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