sábado, 9 de junho de 2018

Quatro superstições inabaláveis

Para uma exposição de pesquisa e notas sobre a cultura popular brasileira, parece dispensável a inclusão das crendices do Marquês d’Argens, falecido há quase duzentos anos e vivendo na perfeita ignorância de que o Brasil existisse.
Quero apenas lembrar que os receios desse fidalgo francês do século XVIII, sob Luís XV e vinte e cinco anos hóspede ilustre de Frederico, o Grande, Rei da Prússia, espécime de casta nobre, superior e desdenhosa, são absolutamente os mesmos que afligem a contemporaneidade popular no Brasil. Nada se perdeu ou modificou, da mente do aristocrata de Versailles e Sans-Souci para o homem vulgar dos nossos dias.
Lorde Macaulay (Macaulay’s essays and lays of Ancient Rome, Londres, 1886), comentando o livro de Thomas Campbell sobre Frederic the Great and his times (Londres, 1842), evocou o Marquês d’Argens, Chambellan do rei da Prússia, e durante vinte e cinco anos seu favorito.
O Marquês Jean Baptiste de Boyer d’Argens nasceu em Aix, Provença, 1704, e faleceu no castelo de La Garde, perto de Toulon, em 1771. Uma queda de cavalo afastou-o da vida militar. Seu pai deserdara-o pelas suas extravagâncias impertinentes. Leitor insaciável, d’Argens era um ótimo filho do século, zombeteiro, incrédulo, pessimista, cínico, absolutamente desprovido do sentimento religioso, inimigo da Igreja Católica (diríamos, hoje, alérgico), elegantíssimo, cheio de graças verbais, adamado, cortesão até a medula. Não tendo Moral, não acreditava na existência dela. Sem Deus, sem Rei e sem Dama, foi para a Holanda a fim de escrever livremente contra o que a lei em França proibia. Suas Lettres juives, chinoises et cabalistiques encantaram Frederico II, que o convidou a fixar-se na sua Corte.
O livro d’Argens é um pálido e mofado reflexo do Lettres persannes de Montesquieu (Amsterdã, 1724), tendo apenas sátira mais salgada e desrespeitosa e atrevimento fingindo altivez. Em Berlim, d’Argens dominou e foi um diretor de boas maneiras e de alagante irreligiosidade sem que deixasse de ser um submisso e rastejante turiferário do Rei. Depois de cinco lustros de vida prussiana o provençal rompeu com Frederico II e voltou para sua província, onde morreu. Em 1778 publicaram suas obras em 24 volumes que ninguém lê.
O retrato d’Argens é a síntese viva que Macaulay traçou: “The parts of d’Argens were good, and his manners those of a finished French gentleman; but his whole soul was dissolved in sloth, timidity, and self-indulgence. His was one of that abject class of minds which are superstitious without being religious. Hating Christianity with a rancour which made him incapable of rational inquiry, unable to see in the harmony and beauty of the universe the traces of a divine power and wisdom, he was slave of dreams and omens, would not sit down to table with thirteen in company, turned pale if the salt fell towards him, begged his guests not to cross their knives and forks on their plates, and would not for the world commence a journey on Friday”. (“Os dotes d’Argens eram bons, e suas maneiras as de um completo fidalgo francês; mas sua alma se dissolvera em indolência, timidez e autoindulgência. Pertencia a esta abjeta classe de espíritos que são supersticiosos sem que sejam religiosos. Odiando o Cristianismo com rancor, era incapaz de uma indagação racional, sem capacidade para ver na beleza e harmonia do universo os traços da sabedoria e poder divino, mas era escravo de sonhos e presságios, não sentando a uma mesa onde estivessem treze pessoas, ficando pálido quando o sal derramava-se diante dele, pedindo aos hóspedes que não cruzassem as facas e os garfos nos seus pratos e por coisa alguma deste mundo começaria uma viagem numa sexta-feira.”)
Macaulay fixou as superstições mais permanentes e poderosas num espírito ágil, brilhante e fácil como o d’Argens, aristocrata e cioso dos antepassados apesar de fingir começar o mundo por ele mesmo. Eram essas superstições as comuns e temidas não apenas na França e na Alemanha, mas na Europa palaciana, nas cortes, salões, mundanidades sedutoras, de meados do século XVIII. São todas contemporâneas e constituem soluções defensivas contra o mistério das forças ocultas na invisibilidade de seu poder maléfico. Continuam inalteradas no respeito popular na sinistra expressão do agouro.
Treze pessoas à mesma mesa ainda é tabu na Europa e América. O número 13, na época de Roma republicana e da Grécia clássica, era respeitado e evitado. Mommsen não encontrou decretos romanos datados desse dia. Hesíodo aconselhava não semear no dia 13. A refeição com treze pessoas é que me parece reminiscência da Última Ceia de Jesus Cristo com os doze apóstolos. Em Cabala, Numerologia, Macumba, Catimbó, Magia Negra, o 13 é um elemento que atrai o mal, o contrário, o às avessas (Superstições e costumes. Rio de Janeiro: Ed. Antunes, 1958).
O sal derramado na mesa mantém seu discreto poder ameaçador. Na Ceia larga, Leonardo da Vinci retratou Judas com o saleiro entornado. O sal é a conservação, a durabilidade, a garantia. Derramado sugere a esterilidade, a morte da vida, o abandono vital. Chão salgado, improdutivo, decretado para o solo das casas arrasadas aos criminosos de lesa-majestade. É uma notória ameaça de infelicidades.
Cruzar o talher é repetir materialmente a cruz, signo da Morte, o Tau anunciador do Destino inexorável, Ananke. Os objetos cruzados significam o Fim. Braços cruzados, posição da impossibilidade agente. Marcada com uma cruz, a coisa está votada ao desaparecimento. Sinal de anulação mágica. Evitam cruzar as mãos quando quatro pessoas se despedem. Cruzar os dedos quando se mente (superstição europeia) é dissipar o pecado da mentira. Matá-lo. Cruzar as pernas no quarto da parturiente retarda indefinidamente o nascimento da criança. Assim fez a deusa Ilítia para que Hércules não nascesse logo. Desenhada na madeira das portas e janelas os espectros não passarão. No interior de Pernambuco, Bahia, Piauí, Goiás, pintam-na para afastar as epidemias (Arthur Neiva e Belisário Pena, Viagem científica, Rio de Janeiro, 1916. A viagem realizou-se em 1912). Com os talheres intencionalmente cruzados nunca mais se reunirão os mesmos convidados. A superstição do Tau e da Cruz é anterior a Jesus Cristo. O suplício do Gólgota universalizou a condenação da cruz que, pela ambivalência natural, é apotropaica, libertadora de malefícios, assombro dos demônios, penhor da paz. Mas é visível a imagem de fim, término, acabamento definitivo. Limite. A sexta-feira era jour néfaste por toda a Europa. Dia em que Jesus Cristo morreu. Reunião de bruxas e lobisomens. Na noite da sexta-feira cumprem os encantados o tenebroso destino punitivo. É o Dia de Vênus, com minúcias e rigores. Nas velhas Macumbas é dedicado a Obatalá, Orixalá, Iemanjá, Iansam. No Catimbó, entretanto, é dia benévolo, de fumaça às direitas, para o bem. Mas, para a maioria, viajar, mudar-se, começar negócio de vulto, oferecer recepção, iniciar campanha política numa sexta-feira é arriscar ao fracasso todos os empreendimentos planejados. Sexta-feira, 13 do mês, é dia perigosamente condenado.
Há quem tenha a sexta-feira como dia indicado para as felicidades em negócio, amor, viagens, trabalhos iniciais. Mas é minoria insignificante. O temor da sexta-feira é ainda na Europa uma constante terrível. Radford conta que em 1931 dois transatlânticos não partiram no dia marcado porque os passageiros em massa protestaram veementemente por ser uma sexta-feira. Mesmo a Good Friday inglesa. Os navios partiram um minuto depois da meia-noite. Já era o sábado. O agouro passara.
Esses superstitions passangers de 1931 davam todas as razões do Marquês d’Argens.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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