segunda-feira, 11 de junho de 2018

O amor junto ao trigo

Cheguei ao acampamento dos Hernández antes do meio-dia, descansado e alegre. Minha cavalgada solitária pelos caminhos desertos, o descanso do sono, tudo isso refulgia em minha juventude taciturna.
A debulha do trigo, da aveia, da cevada, se fazia ainda com éguas. Não há nada mais alegre no mundo que ver girar as éguas, trotando ao redor da mó do grão, debaixo do grito instigante dos cavaleiros. Havia um sol esplêndido e o ar era um diamante silvestre que fazia brilhar as montanhas. A debulha é uma festa de ouro. A palha amarela se acumula em montes dourados. Tudo é atividade e movimento: sacos que deslizam e são enchidos, mulheres que cozinham, cavalos que tomam o freio nos dentes, cachorros que ladram, crianças que a cada instante têm que escapar - como se fossem frutos da palha - das patas dos cavalos.
Os Hernández eram um clã singular. Os homens hirsutos e com barba por fazer, em mangas de camisa e revólver no cinto, estavam quase sempre sujos de azeite, de pó de cereal, de barro, ou molhados até os ossos pela chuva. Pais, filhos, sobrinhos, primos, tinham todos a mesma catadura. Permaneciam horas inteiras ocupados debaixo de um motor, em cima de um telhado ou sobre uma máquina de debulhar. Nunca conversavam. Falavam de tudo em tom de brincadeira, a não ser quando brigavam. Para lutar eram que nem trombas-d'água: arrasavam com tudo que tinham pela frente. Eram também os primeiros nos churrascos em pleno campo, no vinho tinto e nas guitarras chorosas. Eram homens da fronteira, a gente de que eu gostava. Eu, estudante e pálido, me sentia diminuído junto daqueles ativos, bárbaros, e eles, não sei por que, me tratavam com certa delicadeza, que em geral não tinham com ninguém.
Depois do assado, das guitarras, do cansaço cegante do sol e do trigo, a gente tinha que se preparar para passar a noite. Os casais e as mulheres sozinhas se acomodavam no andar térreo, dentro do acampamento levantado com tábuas recém-cortadas. Quanto aos rapazes, fomos destinados a dormir no celeiro. O celeiro erguia seu monte de palha e podia alojar um povoado inteiro em sua maciez amarela.
Para mim tudo aquilo era um incômodo inusitado. Não sabia como me esticar. Coloquei cuidadosamente meus sapatos debaixo de uma camada de palha de trigo, a qual deveria servir-me de travesseiro. Tirei a roupa, me cobri com o poncho e me afundei no monte de palha. Fiquei longe de todos os outros que, de imediato e de maneira unânime, trataram de roncar.
Fiquei muito tempo estendido de costas, com os olhos abertos, o rosto e os braços cobertos pela palha. A noite era clara, fria e penetrante. Não havia lua mas as estrelas pareciam recém-molhadas pela chuva e, sobre o sono cego de todos os outros, somente para mim cintilavam no regaço do céu. Em seguida dormi. Despertei bruscamente porque alguma coisa se aproximava de mim, um corpo desconhecido se movia debaixo da palha e se acercava do meu. Tive medo. Esse algo se chegava lentamente. Sentia se partirem os talos da palha, afastados pela forma desconhecida que avançava. Todo meu corpo estava alerta, esperando. Devia talvez levantar-me e gritar. Fiquei imóvel. Ouvi uma respiração muito perto de minha cabeça.
Súbito uma mão avançou sobre mim, uma mão grande, calejada, mas mão de mulher. Percorreu-me a fronte, os olhos, todo o rosto com doçura. Depois uma boca ávida se colou à minha e senti, ao longo de todo meu corpo, até os pés, um corpo de mulher que se agarrava comigo.
Pouco a pouco meu temor se mudou em prazer intenso. Minha mão percorreu sua cabeleira com tranças; uma fronte lisa, os olhos de pálpebras fechadas, suaves como amapolas. Minha mão continuou buscando e toquei dois seios grandes e firmes, nádegas amplas e redondas, pernas que me entrelaçavam, e mergulhei os dedos em um púbis como musgo das montanhas. Nem uma palavra saía nem saiu daquela boca desconhecida.
Como é difícil fazer amor sem causar ruído em um monte de palha, compartilhado por mais sete ou oito homens, homens adormecidos que por nada do mundo devem ser despertados. Mas o certo é que tudo se pode fazer, ainda que custe cuidados infinitos. Um pouco mais tarde, também a desconhecida caiu bruscamente adormecida junto de mim e eu, exaltado pela situação, comecei a ficar aterrorizado. Logo amanheceria, pensava, e os primeiros trabalhadores encontrariam a mulher nua no celeiro, estendida a meu lado. Mas também eu adormeci. Ao despertar estendi a mão sobressaltado e só encontrei um côncavo tênue, sua morna ausência. Depois um pássaro começou a cantar e logo a selva inteira se encheu de gorjeios. Soou o apito de motor e homens e mulheres começaram a transitar e a se atarefarem junto ao celeiro em suas ocupações. O novo dia de debulha se iniciava.
Ao meio-dia almoçávamos reunidos ao redor de compridas mesas. Eu olhava de soslaio enquanto comia, procurando entre as mulheres a que pudesse ter sido a visitante noturna. Mas umas eram velhas demais, outras demasiado magras, muitas eram mocinhas delgadas como sardinhas. E eu procurava uma mulher compacta, de bons seios e tranças compridas. De repente entrou uma senhora que trazia um pedaço de assado para seu marido, um dos Hernández. Esta, sim, podia ser. Ao contemplá-la do outro extremo da mesa, acho que notei naquela bela mulher de grandes tranças um olhar rápido e um sutilíssimo sorriso. E me pareceu que esse sorriso se fazia maior e mais profundo, se abria dentro de meu corpo.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

2 comentários:

  1. "Eu bato o portão sem fazer alarde. Eu levo a carteira de identidade. Uma saideira, muita saudade."

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