sábado, 23 de junho de 2018

Historinha para duas Maracas e um Bongô

Valtércio adorava bolero. Acordava com El Reloj e ia dormir ao som de Noche de Ronda. Nos fins de semana, em Saquarema, compunha um bolero interminável. Resmungava perfídias e palavrões, e não conseguia bolar um fecho de ouro. Ficava desesperado e botava a culpa na Zuleica. Mulher serena, dedicadíssima ao lar, Zuleica, na opinião de Valtércio, não dava samba - ou melhor, bolero.
Bem que Valtércio tentava criar caso:
- Hoje, na praia, você não tirava o olho de um rapaz de sunga amarela. Tava admirando o Trio Los Panchos dele?
- Eu, Tezinho? Eu só tenho olhos pra você. - Grrr. I only have eyes for you não é bolero...
- O quê?
- Nada, esquece.
Sem inspiração, Valtércio esticava o bolero. Ravel babaria de inveja. Empacou numa rima rica pro “Mirar”. Depois de um churrasco na casa dos compadres, Valtércio, meio pinguço, apelou pro melodrama em portunhol:
- Zuleica...
- Quié, Tezinho?
- Não me chama de Tezinho, porra! Tezinho não dá bolero! Nem música sertaneja guenta um Tezinho, Zuca.
- E Zuca? Zuca dá bolero? Você imagina um mexicano de sombrero e bigodão chamando a mulher de Zuca?
- Bah, Zuca!
Bazuca é tua mãe!
- Pelo amor de Deus, atiende-me!
- Tu não é telefone.
- Yo necessito hablar-te!
- Fala feito gente!
- Algo que quiçá no esperes, doloroso talvez...
- Tá com hemorróida?
- Grrr, escucha-me!
- Oh, Deus, como eu sou infeliz!
- Isso é samba-canção, porra!
- Não grita comigo, Tezinho!
- Grrr, assim o farei. Nosotros...
- Eu sei que é refresco.
- Refresco? Que refresco?
- No dos outros é refresco. Não é isso que você quis dizer?
- Isso é marchinha de carnaval, porra, não é bolero.
- Tem dó de mim, porque estou triste assim.
- Não venha com choro!
- Por que tanta judiação?
- Ai, meu saco, agora é baião!
- A gente somos inútil.
- Olha, se apelar pro rock feito o Medina, eu cometo uma loucura! Por favor, Zuca, devemos separar-nos.
- ?
- No es falta de carino...
- Vai ver que é, vai ver que é.
- Outra marchinha e eu te parto os corne!
A vespa da intriga originou outra briga.
- Engole a seresta! Engole a seresta!
- Que será de mim?
- Sempre a mesma cantiga... Você não entende que faço isso en nombre deste amor y por tu bien?
- E no ABC do santeiro, não vai nada?
- Vê lá como fala, sua vaca!
- Hipócrita!
- Graças a Deus! Um bolero!
- Tu é um garganta profunda!
- Hein? Boa ideia pro final, Zuca! En tu garganta profunda, jorro poderoso como el mar! Achei! Achei rima-rica para mirar: el mar! Que tal? El Mar...
- Ah, não enche!
Valtércio quebrou o violão na boca de Zuleica.
Horas mais tarde desabafava com o delegado de plantão:
- “Não enche” é coisa que se peça ao mar, doutor?!?
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

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