Agora à tarde,
tive um sonho. Eu chegava a uma seção eleitoral para votar. Não
tinha dúvidas a respeito de meu voto. Na cabine, para meu espanto,
via que o nome de meu candidato não constava da lista oferecida pela
urna eletrônica.
Desorientado, me
dirigi ao presidente da mesa. Ele me passou, então, uma lista
oficial de candidatos, com o timbre da República, para provar que o
nome que eu procurava não existia. “Você o inventou”, ele me
disse, “só lhe resta escolher outro nome”.
O sonho não é tão
absurdo quanto parece. Não fala da democracia brasileira, fala de
mim – de quem mais? Trata, na verdade, das dificuldades que
enfrento para encontrar um nome que defina o que faço.
Antes de pegar no
sono, eu lia A clave do poético, coleção de ensaios de
Benedito Nunes organizada por Victor Sales Pinheiro (Companhia das
Letras). Detivera-me, com especial interesse, no ensaio que abre o
livro, “Meu caminho na crítica”, uma reflexão de Benedito a
respeito de sua formação.
Benedito Nunes tem
uma trajetória intelectual densa, construída na leitura rigorosa e
no embate teórico. Enquanto ele estudava e refletia, eu me
desesperava nas redações de jornal, lutando contra as armadilhas da
realidade. Ambos miramos a literatura, mas cada um de uma posição.
Afirma Benedito que
o crítico lê, sempre, em nome de uma teoria. Enquanto lê, aplica
princípios intelectuais ao livro. Alguma filosofia sempre está
implícita na crítica literária. “Os métodos da crítica sempre
têm uma maneira a priori, por assim dizer filosófica, de
conceber e de avaliar o alcance do texto”.
Críticos
literários leem, sempre, munidos de certa bagagem. Eles são como
aquele viajante que, ao desembarcar em um aeroporto, quer abraçar o
amigo que o espera, mas não pode, e se limita a acenar, porque tem
as mãos cheias de malas. Esse viajante (ler é viajar) lê, sempre,
em função de algo que envolve o livro – seja a linguagem, a
sociedade, a história. Por mais que não queira, ele aplica seu
percurso intelectual (sua bagagem) ao livro que abre.
Ainda que não
idealize o poder da teoria e que evite o olhar dogmático do
especialista, quando lê, esse viajante interpõe sempre um a
priori – uma lente espessa e dura – entre ele e a escrita.
Num esforço comovente para se livrar da bagagem que o oprime, o
próprio Benedito se define como “um tipo híbrido”, que procura
se colocar entre o a priori (a bagagem) e seu objeto (o
amigo). Que busca outro lugar: outro nome.
Diz Benedito: “Não
pretendi nem pretendo aplicar a filosofia, como método uniforme, ao
conhecimento da literatura”. Tampouco tentou o contrário: fazer da
literatura instrumento de ilustração de verdades filosóficas. Foge
das duas posições – busca uma terceira, ainda sem nome.
Qual é a luta de
Benedito? Onde está a beleza de seu projeto? Ela aparece naquele
momento em que, ao desembarcar, o viajante larga suas valises no chão
e corre para beijar o amigo. Não que ele vá recusar a posse da
bagagem. Também não irá abandoná-la, não só porque ela lhe
pertence, mas porque ela é parte de si. No entanto, se não largar a
bagagem, irá sufocar o amigo com seu peso. Abraçará não o amigo,
mas a si mesmo.
Quanto a mim, que
leio desde pequeno, nunca desejei construir certezas ou sistemas a
partir do que leio. Sinto-me mais próximo dos românticos, que
defendiam a existência de uma intuição intelectual. Intuição,
como diz Benedito, “capaz de criar o objeto no momento de
conhecê-lo”. Do leitor comum, desamparado e de mãos vazias, que
lê não porque deve, ou porque busca, mas porque ama.
Ao largar a bagagem
no saguão e avançar sozinho, as mãos limpas, o leitor se dá a
liberdade de reinventar o livro que lê. Leitores comuns, que
desembarcam na literatura vindos das mais longínquas procedências –
a educação, a psicanálise, a física, as artes plásticas –
compõem a maioria dos frequentadores (lá ia eu usar a odiosa
palavra, “alunos”) de meus círculos de leitura.
Todos eles, é
verdade, carregam também suas bagagens intelectuais. Cada um deles
lê com o que tem (a educação, a psicanálise, a física etc.).
Mais que isso: lê com o que “é”.
A diferença é
que, em nenhum momento, eles supõem que suas valises possam conter,
ou delimitar, ou ainda esclarecer aquilo que leem. Uma psicanalista
(Carmen da Poian), um físico (Daniel Weller), um educador (Márcio
Lemgruber), uma pintora (Guita Soifer) leem sem nada buscar ou
desejar – e é por isso que a literatura os captura.
É verdade: mesmo
deixando para trás, no saguão, suas bagagens singulares, ainda
carregam grande parte delas dentro de si. É com esses restos,
preciosos, que eles se põem a ler. Quando abrem um livro, imitam os
leitores românticos: em vez de decifrar o que leem, querem ser
fisgados pelas palavras. São (re)inventores. São (co)autores.
Deles não se exige
coerência, rigor, argumentação. Só se pede uma coisa: que se
entreguem e, assim, na experiência da aventura, reconstruam o livro
a partir do que conseguem ler. Não leem para testar teorias, ou para
vigiar estilos, ou para conferir procedências. Leem para ser.
Não existem
leitores “puros” – trazemos sempre alguma bagagem nas mãos.
Mas existem leitores leigos: aqueles que largam suas valises pelo
caminho e correm, de coração aberto, em direção a um livro. Mais
ainda: aqueles que, ao se aproximarem de um livro, despem seus mantôs
e sobretudos, abandonam chapéus e cachecóis, e se expõem, de corpo
aberto, ao fogo da leitura.
São esses os
leitores que me interessam: os que não encontram seu nome na lista
oficial de candidatos a leitor. Esta é, também, minha utopia: ler
como um leitor inventor, e não como um leitor que sabe o que quer.
A grandeza de
Benedito Nunes é que, mesmo arrastando atrás de si uma vasta e
preciosa bagagem, ele consegue ler com o coração desarmado.
Surpreende-se, espanta-se, deixa-se afetar pelo que lê. E desse
atordoamento faz sua crítica.
O próprio Benedito
relembra, a propósito, uma ideia de Clarice Lispector: “A
linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e
por destino volto com as mãos vazias”.
José Castello,
in Sábados inquietos
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