Está desaparecendo
a popularidade nacional do gesto de pegar no lóbulo da orelha e
dizer: É da pontinha! proclamando a excelência do objeto
indicado na ocasião.
À volta de 1922,
Ano do Centenário da Independência e que atraiu para o Rio de
Janeiro as curiosidades de todo o Brasil e de todo o Mundo, a frase
era comum e ouvida em qualquer recanto carioca ou amazonense, gaúcho
ou pernambucano. É da pontinha!... Daqui!... valiam
aprovações e denúncia oral da indiscutível primazia. Com a
simples mímica de tocar a orelha dava-se opinião suficiente sobre
vinho, mulher, cavalo, culinária, versos, quadros, todos os motivos
sedutores que podiam envolver a sensibilidade humana.
Já não ouço, com
a mesma frequência, o é da pontinha ou o mero é daqui,
bastantes para um notório julgamento.
Praticamente parece
extinto e podemos dizer que os gestos, com voga e fama de vulgaridade
expansionista, têm, como os livros, seu destino. Alguns atravessam o
milênio e outras curtas décadas, vividas intensamente na simpatia
do povo.
Quem não o
conheceu, aplicado e expressivo, em todas as camadas sociais e em
todos os quadrantes do Brasil, etnográfico e folclórico?
Tive mesmo ocasião
de assistir a uma curiosa, e possivelmente única, utilização do
gesto num discurso público de agradecimento, sonora e ruidosamente
aplaudido. Não posso precisar o ano e mês mas, pela narrativa, será
possível identificar-se no tempo a festa evocada. 1919?
Faziam a campanha
oficial da nacionalização da pesca e os poveiros, pescadores
veteranos, iam sendo compelidos a aceitar a condição de
“brasileiros” ou abandonar os barcos e as redes ao redor da Baía
da Guanabara. João do Rio (1881-1921) tomara a defesa dos poveiros,
portugueses da Póvoa do Varzim, e estava sendo aclamado pela
respectiva colônia. No Teatro João Caetano ou Carlos Gomes, no Rio
de Janeiro, uma companhia portuguesa ofereceu a João do Rio uma
homenagem. Teatro repleto, assistência entusiástica, aplausos
ensurdecedores. João do Rio, de um camarote perto do palco,
agradeceu num rápido discurso, muito pouco entendido e conexo
debaixo da tempestade de palmas. E o público explodiu numa apoteose
quando o jornalista, fazendo o elogio do pescador poveiro, disse que,
no ponto de vista de trabalho e caráter, era daqui, e segurou
a extremidade do pavilhão auditivo. O gesto era português e
popularíssimo em Portugal.
Aplicava-se
especialmente aos vinhos e isto se verificava, porque havia e há em
Portugal a frase vinho de orelha quando alguém quer
referir-se a um bom vinho. E não querendo citar o de orelha,
alusivo ao vinho, bastará fazer o gesto de tocar na orelha. É
daqui... e todo bom bebedor entende perfeitamente. Pertencente à
gíria dos provadores passou ao patrimônio comum da linguagem
popular nas regiões da vindima.
Na sua seção
Arquivo Etnográfico (Lusa, janeiro-junho, 1924, Viana do
Castelo), Cláudio Basto recolheu um dos letreiros típicos da Feira
de Agosto, em Lisboa (1915), nas barracas de comes e bebes.
É lá ti Mané
Nabiço
Você é mais
fino q’uma abelha,
Olhe q’o seu
vinho é o melhor
é d’aqui...
de traz d’orelha.
Eça de Queirós,
em A ilustre casa de Ramires (cap. II), faz o grande Titó, D.
Antônio Vilalobos, convidar Gonçalo Mendes Ramires, usando dessas
tentações: “Ouve lá! Tu queres hoje à noite cear no Gago,
comigo e com o João Gouveia? Vai também o Videirinha e o violão.
Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que comprei esta manhã
a uma mulher da Costa por cinco tostões. Assada pelo Gago!...
Entendido, hem? O Gago abre pipa nova de vinho, do Abade de Chandin.
Conheço o vinho. É daqui, da ponta fina. E Titó, com dois dedos,
delicadamente, sacudiu a ponta mole da orelha”. E no encontro,
Gonçalo aparece esfaimado, não permitindo que o Titó descesse à
tabacaria do Brito, “a buscar uma garrafa de aguardente de cana da
Madeira, velha e da ‘ponta fina’”.
E, narrando a
jornada de Santa Clara para Oliveira, Titó dizia ao fidalgo: “Viemos
juntos! Por sinal numa tranquitana infame... Até se nos desferrou
uma das pilecas e tivemos de parar na Vendinha. Não se perdeu tempo,
que há agora lá um vinhinho branco que é daqui da ponta fina!”.
Beliscava a orelha.
Já em princípios
do século XVII, dizia-se em Portugal: “Este vinho é d’orelha,
por São Prisco!”, como se encontra na Comédia Ulissipo,
de Jorge Ferreira de Vasconcelos, a edição de Lisboa em 1618, que
outra mais antiga não conheço.
A origem da frase
portuguesa é a francesa “Vin d’une oreille, bon vin, dont on
approuve le goût en inclinant la tête d’un seul coté”. O
prestante Larousse informa que o “Vin des deux oreilles,
mauvais vin, dont le goût désagreáble fait qu’on remue plusieurs
fois la tête, et par conséquent l’une et l‘autre oreille”.
Os gestos franceses
relativos ao vinho duma orelha e vinho de duas orelhas era inclinar a
cabeça para um lado ou movê-la várias vezes, duma para outra
orelha, desaprovativamente.
De Portugal seria o
gesto de pegar no lóbulo da orelha como ato complementar
significativo. Este é que veio atravessando tempo e monção e o
registro de Eça de Queirós demonstra sua cotidianidade na segunda
metade do século XIX. Ao contrário do Brasil, ainda está vivo e
presente na mímica tradicional portuguesa.
Luís da Câmara
Cascudo, in Coisas que o povo diz
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