sábado, 23 de junho de 2018

Dos trasmundanos

Outrora, também Zaratustra lançou sua ilusão para além do homem, como todos os trasmundanos. A obra de um deus sofredor e atormentado me parecia então o mundo.
Sonho me parecia então o mundo, e ficção de um deus; colorida fumaça ante os olhos de um divino insatisfeito. Bem e mal e prazer e dor e tu e eu — eram, para mim, colorida fumaça ante olhos criadores. O criador quis desviar o olhar de si mesmo — então criou o mundo.
É um ébrio prazer, para o sofredor, desviar o olhar do seu sofrer e perder a si próprio. Ébrio prazer e perda de si próprio me parecia o mundo outrora.
Este mundo, o eternamente imperfeito, imagem de uma eterna contradição, e imagem imperfeita — um ébrio prazer para seu imperfeito criador: — assim me parecia outrora o mundo.
Assim, também eu lancei, outrora, minha ilusão para além do homem, como todos os trasmundanos. Para além do homem, de verdade?
Oh, irmãos, esse deus que eu criei era obra e loucura de homens, como todos os deuses!
Homem era ele, somente uma pobre porção de homem e de Eu; de minhas próprias cinzas e brasas me veio ele, esse fantasma; na verdade, não me veio do além!
Que aconteceu, meus irmãos? Superei a mim mesmo, ao sofredor; carreguei minhas próprias cinzas para os montes, uma chama mais viva inventei para mim. E eis que o fantasma fugiu de mim!
Sofrimento seria agora para mim, e tormento para o convalescido, crer em tais fantasmas; sofrimento seria para mim, e humilhação. Assim falo aos trasmundanos.
Sofrimento e impotência — foi o que criaram todos os trasmundanos; e a breve loucura da felicidade, que apenas o ser mais sofredor experimenta.
Fadiga que de um salto quer alcançar o fim, com um salto-mortal, uma pobre, insciente fadiga, que nem mais deseja querer: ela criou todos os deuses e trasmundanos.
Acreditai-me, irmãos! Foi o corpo que desesperou do corpo — que tateou as paredes últimas com os dedos do espírito ludibriado.
Acreditai-me, irmãos! Foi o corpo que desesperou da terra — que ouviu o ventre do ser a lhe falar.
E então quis passar com a cabeça pelas últimas paredes, e não apenas com a cabeça — para lá, para “aquele mundo”.
Mas “aquele mundo” está bem escondido dos homens, aquele desumanado mundo inumano, que é um celestial Nada; e o ventre do ser não fala absolutamente ao homem, exceto como homem.
Em verdade, difícil de demonstrar é todo ser, e difícil é fazê-lo falar. Dizei-me, irmãos, a mais prodigiosa de todas as coisas não é a mais bem demonstrada?
Sim, esse Eu, e a contradição e confusão do Eu, é ainda quem mais honestamente fala do seu ser, esse Eu criador, querente, valorador, que é a medida e o valor das coisas.
E esse honestíssimo ser, o Eu —, fala do corpo e quer ainda o corpo, mesmo quando poetiza, sonha e esvoeja com asas partidas.
Cada vez mais honestamente aprende ele a falar, o Eu: e, quanto mais aprende, tanto mais palavras e homenagens encontra para o corpo e a terra.
Um novo orgulho me ensinou meu Eu, que ensino aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestiais, mas levá-la livremente, uma cabeça terrena, que cria sentido na terra!
Uma nova vontade ensino aos homens: querer esse caminho que o homem percorreu cegamente, declará-lo bom e não mais se esgueirar para fora dele, como os doentes e moribundos!
Foram os doentes e moribundos que desprezaram corpo e terra e inventaram as coisas celestiais e as gotas de sangue redentoras: mas também esses doces, sombrios venenos tiraram eles do corpo e da terra!
Queriam escapar à sua miséria, e as estrelas lhes eram distantes demais. Então suspiraram: “Oh, se houvesse caminhos celestes, para nos esgueirarmos em outro ser e outra sorte!” — e inventaram suas artimanhas e sangrentas poções!
Imaginaram-se então arrebatados a seu corpo e a essa terra, os ingratos! Mas a quem deviam o espasmo e a volúpia desse arrebatamento? A seu corpo e a essa terra.
Tolerante é Zaratustra com os doentes. Não se irrita, em verdade, com suas formas de consolo e ingratidão. Que se tornem convalescentes e superadores e criem para si um corpo superior!
Tampouco se irrita Zaratustra com o convalescente, quando esse olha com ternura para sua ilusão e à meia-noite ronda pelo sepulcro de seu Deus: mas suas lágrimas continuam a ser, para mim, doença e corpo doente.
Sempre houve muito povo enfermo entre aqueles que poetam e têm ânsia de Deus; odeiam furiosamente aquele que busca o conhecimento e a mais jovem das virtudes, que se chama: honestidade.
Sempre olham para trás, para tempos obscuros: e, certamente, ilusão e fé eram outra coisa então; o delírio da razão era semelhança com Deus, e a dúvida, pecado.
Bem demais conheço tais semelhantes a Deus: eles querem que se creia neles e que a dúvida seja pecado. Bem demais sei, também, no que eles próprios mais acreditam.
Na verdade, não em trasmundos e gotas de sangue redentoras: mas no corpo creem eles mais que tudo, e seu próprio corpo é, para eles, sua coisa em si.
Mas uma coisa doentia é para eles: e bem gostariam de sair de sua própria pele. Por isso escutam os pregadores da morte e pregam trasmundos eles mesmos.
Escutai antes a mim, irmãos, à voz do corpo sadio: é uma voz mais honesta e mais pura.
De modo mais honesto e mais puro fala o corpo sadio, o perfeito e quadrado: e ele fala do sentido da terra.

Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

Nenhum comentário:

Postar um comentário