Gosto da Adélia
Prado por várias razões. É poeta. Tem o jeitão mineiro. E
teóloga. Sempre que ela fala sobre os mistérios do mundo sagrado,
eu me calo e medito. Quase sempre as palavras dela iluminam as minhas
dúvidas. Sugestão para algum estudante que esteja à procura de
tema para dissertação: “A Teologia da Adélia Prado”...
Mas hoje peço
perdão. Discordo do que ela escreveu. Estava teologando, falando
sobre a coisa mais terrível que há no mundo, o demônio, e foi
isso, mais ou menos, o que ela escreveu. Digo “mais ou menos”
porque não sei de cor e não posso consultar os livros dela que
estão encaixotados, prontos para uma mudança que, julgo, será a
última... Foi isso que acho que ela disse: “O céu será
igualzinho a essa vida, menos uma coisa: o medo...” . Tanta
coisa boa! Não é preciso pôr mais nada. O que está aí chega.
Precisa só tirar uma coisa, uma única coisa, e a Terra se
transformará no céu. Qual é o nome dessa coisa terrível? Ela
responde: o medo.
Concordo. Mas eu
acho que tem coisa pior, que é a causa de todos os medos: a dor.
Nunca tive medo de cálculo renal. A despeito de eu nunca ter tido
medo dele, ele veio, sem pedir licença e sem consultar se eu tinha
medo ou não. Foi assim que conheci pela primeira vez a dor do
inferno. Cessam todos os pensamentos. O corpo só deseja uma coisa:
parar de sentir dor, a qualquer preço.
Dor não tem jeito
de explicar. Bernardo Soares diz que tudo o que é sentimento é
inexplicável. O artista, para comunicar seus sentimentos —
inexplicáveis —, se vale de um artifício: ele invoca um
sentimento “parecido” que o outro conhece. Não posso explicar o
cheiro da flor de um jasmim-do-imperador. O perfume está além das
palavras. Mas eu posso dizer: “É igualzinho ao cheiro de
pêssego...”.
De que comparação
vou me valer para explicar a dor a alguém que não a está sentindo?
Só sabe o que é a dor aquele que a está sentindo, no presente.
Enquanto a dor está doendo, meu corpo — não minha cabeça —
sabe o que ela é. Passada a dor, ela fica na memória. Passa a morar
no passado. Mas isso que está na memória não é conhecimento da
dor porque o passado não dói. A memória da dor, por terrível que
tenha sido quando aconteceu, não me dá conhecimento da dor, depois
que ela se foi.
Minha memória mais
antiga de dor me leva de volta à roça onde vivi quando menino.
Lembro-me da cena, mas não sinto. Acho até engraçado. Era dor de
dente — dor num minúsculo dente. A dor fazia meu minúsculo dente
inchar até ficar do tamanho do universo — e eu, chorando, sem
saber contar a minha dor, dizia que tinha inveja das galinhas que não
tinham dentes... Foi o meu primeiro encontro.
Mais tarde, ela
voltou sem se anunciar. Não a mesma. Nenhuma dor é a mesma. Cada
dor é única. Chegou bruta, definitiva. Lutei contra ela usando as
armas que se compram nas farmácias. Inutilmente. Levaram-me (nesse
ponto eu já não era dono de mim mesmo; eu estava à mercê dos
outros) então para o hospital, lugar da medicina forte. As injeções
são mais potentes que os comprimidos. Aplicaram-me seis Buscopan. A
dor não tomou conhecimento. Ficou mais forte. Comecei a vomitar. O
médico, reconhecendo a derrota dos recursos penúltimos, dirigiu-se
à enfermeira e disse o nome do último, nenhum mais forte: “Aplica
uma dolantina nele...”.
Ela aplicou. Aí,
passados cinco minutos, senti a mais deliciosa sensação que tive em
toda a minha vida. Não era sensação de nada. Que me importavam
música, sexo ou flores? Era, simplesmente, a sensação de não ter
dor. Pensei se essa euforia não deveria ser o estado normal da alma,
sempre que o corpo não estivesse sentindo dor. Rindo e feliz,
brinquei que o Paraíso morava dentro de uma ampola de dolantina...
Rubem Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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