quarta-feira, 6 de junho de 2018

Desejo não é carência

O desejo tem suas leis. Precisa de regras até para perder as regras. Não se adota de qualquer jeito. O desejo não pode ser humilhado e ofendido, não é passageiro e involuntário.
O desejo investiga seu amor como se fosse sua morte. O desejo tem responsabilidade, por mais que isso pareça despropositado.
O desejo apresenta ética, princípios, caráter. Não é inconsequente, como se convencionou chamá-lo. O desejo não apela para golpes baixos. O desejo não suporta quem aproveita a carência de outro para se aproveitar, quem finge amizade para seduzir. Quem é educado apenas para agradar, quem se julga melhor do que o seu próprio desejo. Quem escuta confidências para avançar o corpo.
Quem envenena para se aproximar. Quem dá um ombro cobiçando a perna. Quem mexe nos cabelos para tapar os olhos. Quem não respeita a fragilidade, as dúvidas e as inquietações de uma crise.
Quem se esbalda no medo para oferecer proteção. Quem apressa a mulher para esquecê-la, quem não se afasta um passo, um pouco, para lembrá-la. Quem invade a intimidade para expô-la ainda mais. Quem é dedicado na véspera e brusco na despedida. Quem não observa o quarto para recolher as roupas. Quem culpa o desejo pela posterior falta de desejo. Quem diz sim já antecipando o não. Quem afoba para destruir, quem não estará depois da espuma para alinhar o mar. Quem espanta as aves de perto para não ser contrariado. Quem encontra desculpas para se esconder. Quem não paga o insulto de viver. Quem mutila o braço do rio por não saber segui-lo.
O verdadeiro desejo espera a mulher se recompor, espera a serenidade, que ela fique mais forte e possa escolher uma nudez que não seja tolerância e fraqueza. É devagar e denso, raiz carregada do visco e das sombras, quietude amadurecida do sumo e da nata.
O verdadeiro desejo não teme, inclusive, o risco de ser recusado. Não é uma circunstância, é linguagem. Como uma foto, o desejo não será dobrado. Como uma foto, o escrito vai no verso, não sobre a imagem.
O verdadeiro desejo não é predatório, não é egoísta; é generoso, preocupa-se em chegar ao final, obediente ao início; em chegar ao início, obediente ao final. Não se rebaixa. Não significa um alívio, mas a contenção, a alegria alta da corda de um sino.
É, muitas vezes, prender o prazer para se conhecer mais.
Fabrício Carpinejar, in Ai meu Deus, ai meu Jesus

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