Virgília? Mas
então era a mesma senhora que alguns anos depois...? A mesma; era
justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos
dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais
íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou
dezesseis anos; e era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça,
e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a
primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é
romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às
sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto
nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, sala das mãos da
natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo
passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era
isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril,
cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção,
- devoção, ou talvez medo; creio que medo.
Aí tem o leitor,
em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia
influir mais tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu
que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à
luz, - tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença
entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi?
Crê que era tão sincero então como agora; a morte não me tornou
rabugento, nem injusto.
- Mas, dirás tu,
se você não guardou na retina da memória a imagem do que fui, como
é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la
depois de tantos anos?
Ah! indiscreta! ah!
ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse
poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas
impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer o Pascal
que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante,
isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a
anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva,
que o editor dá de graça aos vermes.
Machado de
Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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