— Dona
Munda esteve aqui.
A
enfermeira recebe com estas palavras o médico português à porta do
posto de saúde. Tão pouca coisa acontecia na Vila que a mais
pequena novidade assumia a dimensão de uma revelação cósmica.
Rosto arredondado pela alegria de ser dona de um assunto, a
enfermeira adianta mais detalhes:
—
Acabou de sair há pouco. Deixou este
bilhete para o senhor.
O
médico lê o papel rabiscado e, num ápice, o seu semblante se
transtorna. Volta a despir a bata que acabara de colocar sobre os
ombros.
— Onde
foi ela?
— Foi
para casa, diretamente. Levou a caixa das injeções e foi para casa
dela.
— A
caixa das seringas?
— Sim.
Disse que o doutor lhe pediu para levar o material lá para casa
dela.
O
médico sai correndo. Noutra altura ele teria reparado no luar.
Naquela noite, o luar invadia as ruas vazias da Vila como a maré
enche o mar. “É o tempo da Lua”, diziam, como se o luar fosse um
fruto de estação.
Desta
vez, porém, o médico aproveita a luz coada apenas para estugar o
passo. Quer evitar o crime. Entra de rompante pela casa dos Sozinhos,
depara com a mulher na cabeceira do marido que jaz despido sobre o
leito.
— O
que é que a senhora fez?
— Ele
é que me fez a mim, veja o que estava na gaveta dele.
Exibe
uma fotografia de uma bela moça, mulata. É uma imagem de uma
cerimônia de formatura, a moça enverga uma toga negra que contrasta
com o adolescente sorriso.
— É
ela! — insiste Munda.
Era
ela: uma menina-amante, uma dessas com quem há muito o velho
sonhava. O médico contempla a fotografia e lhe vem à ideia a
condição dos meninos soldados: um mesmo mortífero destino aproxima
os pequenos mercenários e as jovens prostituídas.
— Eu
sempre suspeitei, Doutor. Sempre. Quando Deolinda se queixou, eu
tomei a defesa dele. Não foi por convicção, foi por medo de
aceitar a verdade.
Bartolomeu
contorce-se e geme, arriscando tombar do leito. O médico senta-se a
seu lado, ausculta-lhe os sinais vitais.
— A
senhora deu uma injeção ao seu marido?
— Não
me lembro, Doutor.
A
respiração do velho, num instante, parece esvair-se. Esse
entorpecimento dá lugar, depois, a uma conturbada agitação.
—
Deixe-me ficar com ele. Eu quero ficar a
sós com o meu marido.
— Não
sei, Dona Munda. Eu devo acompanhar o estado dele, é meu dever.
— Esse
homem não tem estado nenhum. Veja bem a seringa, está intacta. Eu
não lhe dei nenhuma injeção.
O
médico, desconfiado, olha o frasco à transparência. Mesmo depois
da inspeção, ele guarda cautelosa reserva.
— Por
favor, me deixe a sós com Bartolomeu — insiste a esposa.
—
Diga-me, não terá consigo uma outra
seringa?
— Não
tenho. Não lhe quero fazer mal. Deu-me uma vontade de matar, mas
passou-me…
Bartolomeu,
entretanto, desperta. Os olhos mortiços vagueiam pelo recinto. E
dirigem-se para a foto da moça que está pousada no colo da mulher.
O homem se apercebe do tema de conversa entre o médico e a esposa.
Munda ergue-se e, com mil cuidados, depõe a fotografia junto ao
rosto do marido.
— Fique
com ela! — sentencia a mulher.
Dá
uns passos em direção à porta. Antes de se retirar, vira-se para
trás para, de olhos desafinados, fixar longamente o marido. Há
nesse olhar um imperceptível adeus?
—
Mulher, venha aqui — suplica o marido.
— Não
me chame de mulher. É um nome demasiado sagrado para a sua boca.
Ele
ergue-se arrastando consigo a roupa da cama e caminha com os pés
presos entre os lençóis. A fotografia dança na sua mão esquerda,
parece um profeta enlouquecido:
—
Munda: essa moça é Isa…
— Não
quero nomes! Não traga nunca o nome dessa mulher para dentro desta
casa…
Saber
do rosto e do nome de uma mulher rival: eis uma faca cujo punho é a
mais afiada lâmina. Como desencravar da alma esse punhal sem se
ferir ainda mais? Talvez, por isso, o inesperado salto dela, roubando
a fotografia das mãos dele e rasgando-a com raiva. O homem permanece
impassível, vendo a imagem destroçar-se em estilhaços. A lágrima
espreita na voz, a baba lhe escorre da tremura dos lábios:
— Essa
moça é minha filha!
O
quarto fica suspenso no anúncio: mesmo os pedaços da fotografia
rodopiam pelo espaço como súbitas mariposas.
— É
minha filha — repete.
Ambos
se sentam, incapazes de suportar o fardo da revelação. A mudez,
naquele momento, não era a ausência da fala. Bartolomeu quer, de
uma assentada, falar todas as línguas. Fica assim sem nada dizer até
que, atabalhoado, começa a desenrolar as penas do seu passado.
Aquela moça era a razão por que ele suportava as longas ausências,
as humilhações de racismo no exterior, as amargas acusações de
Suacelência.
— Eu
ia visitar a minha filha.
E
visitou-a de todas as vezes que o barco rumou para Lisboa até que,
em Abril de 1974, ao sair de São Tomé, o navio recebeu a notícia
da queda do regime colonial português. Ficaram à espera de mais
notícias, inventaram uma paragem por motivos “de ordem técnica”.
Bartolomeu foi chamado ao comandante junto com os chefes da casa das
máquinas. As instruções do capitão foram lacônicas:
—
Estamos parados por causa de uma avaria.
Entendem?
Não
entendiam. Não havia avaria nenhuma. O que avariara tinha sido o
regime dos poderosos. O semblante do comandante traduzia esse luto.
De regresso ao fundo do barco, Bartolomeu cruzou com passageiros e
marinheiros que festejavam, em absoluto contraste com a solenidade
fúnebre da sala de comando.
— É
um fascista, o cabrão do comandante! — rematou um colega.
Na
casa das máquinas comemorava-se entre risos, cantos e bebidas.
— Venha
dançar, Bartolomeu. Venha festejar.
— Eu
tenho que ir para o meu posto.
— Você
não entende? Toda esta merda vai acabar, o seu posto, este barco,
estas viagens, tudo isto vai terminar…
Toda
a noite se festejou. Na solidão do seu pequeno cubículo, porém,
Bartolomeu Sozinho se afundou em tristeza. Sabia que nunca mais veria
a filha. Quando, dois dias depois, desembarcou em Lisboa ele não foi
logo à Amadora. Demorou-se pelas praças e ruas onde multidões
desfilavam entoando palavras de ordem. No Rossio, Bartolomeu roubou
cravos vermelhos que pendiam das portadas. Levou-os à filha, em
sinal de um último adeus.
Aquela
era a história que ele escondera anos a fio. A sua revelação
deixou-o exausto.
—
Entende agora, Mundinha? Eu ia e vinha,
nesse maldito barco, agora percebe porquê? Eu ia visitar a minha
filha…
— Como
se chama?
Ele
não responde, receia a tempestade. Munda renova a pergunta:
— Diga
o nome dela… dessa, de sua filha?
— Isa…
Isadora.
A
mulher fica balbuciando o nome entre dentes. Repete-o como se o
quisesse erguer contra o esquecimento. Bartolomeu ganha coragem:
— Você
me perdoa?
—
Nunca!
— Eu
sei o que você pensa. Mas essa mulher, a mãe dessa menina, nem
existiu, Munda.
E
explica-se: a mãe de Isadora tinha sido o caso de uma única vez.
Ela morrera logo a seguir. Bartolomeu soube-o na viagem seguinte
quando a avó de Isadora o foi esperar ao cais, com a miúda ao colo.
Ele, o pai, que fosse, tranquilo: a menina tinha um colo e um teto.
— Essa
mãe nunca existiu — repete o mecânico.
— Não
perdoo, não posso perdoar — insiste Munda.
— Eu
lhe amei apenas a si, só a si. Nunca houve outra mulher.
— Você
é mesmo estúpido, marido.
—
Pode-me insultar.
— Você
não entende, Bartolomeu? Eu não quero saber de mulheres que você
teve. Eu não lhe perdoo foi me ter roubado uma filha.
Fez
uma pausa, como se lhe custasse emparelhar palavra e sentimento.
— Você
me tirou essa menina.
Retira-se,
com solenidade de rainha, repetindo como uma reza: Isadora, Isadora,
Isadora. Envolto nos lençóis, Bartolomeu parece um monarca
destronado quando ergue o braço acusador:
— Essa
mulher é feiticeira!
O
médico ajuda-o a regressar à cama. O velho ajeita-se no leito,
puxando o lençol até ao queixo. Assim, de relance, parece não
haver corpo debaixo do pano branco. Bartolomeu permanece assim, sem
vida nem aparência, para, depois, de um sacão, repuxar o lençol e
chamar:
—
Doutor?
Os
olhos chispalhudos cravam-se no português e, com rouquidão que
ainda lhe sobra, o velho dispara:
— Eu
sei que você não é médico!
— Como?
— O
senhor não é médico. Anda a mentir, só mais nada.
— Você
viu… Devolva-me a minha pasta!
— O
senhor não é médico e toda a Vila vai saber disso. E vai ser
expulso daqui num abrir sem fechar de olhos…
— Eu
apenas não terminei o curso… faltam-me cadeiras…
— Não
é médico.
— Peço
desculpa, eu apenas queria…
— Se
fosse o inverso, pense bem, se fosse o inverso: o que sucederia a um
africano que fosse apanhado na Europa com documentos falsos?
— Os
meus documentos não são falsos.
— Tem
razão, os seus documentos dizem a verdade. Você é que é falso.
O
médico acha que já ouviu tudo. Terá de enfrentar essa ameaça
pendente, não há remédio para essa vergonha que atrapalha até o
passo com que se retira do quarto.
— Onde
vai? — pergunta ao médico em tom subitamente adocicado.
— Vou
para a pensão, não sei mais o que dizer.
— Não
precisa ir embora.
— Eu
já não tenho nada a fazer aqui.
—
Esqueça o que lhe disse. Eu também
esqueço o resto.
— Não
sei, não posso.
— Tudo
isto não tem importância: você não é verdadeiramente médico, eu
não sou doente.
Não
era saúde que lhe faltava, estava morrendo por saudade da Vida. O
mecânico inspeciona os nós dos dedos. As mãos, mais que o rosto,
deviam ser preservadas desses sinais do tempo. Porque é nas mãos
que nos iniciamos humanos. Das mãos ele se iniciou mecânico. Agora,
só com muita dificuldade conseguirão cruzar-lhe os dedos sobre o
peito, quando ele estiver no leito fúnebre. E, de novo, retoma a
palavra:
— Não
tenha receio, fica um segredo entre os dois. Você, para todos nós,
será sempre doutor. O meu doutor privado.
— Não
sei o que dizer.
—
Apenas uma coisa, nunca mais me pergunte
o que me dói.
Como
podia descobrir o que lhe doía se todo ele era uma dor, a aflição
de ser pessoa, num mundo sem lugar para pessoas?
— O
meu medo não é de morrer. O meu medo é ter de nascer de novo.
Apenas
por isso ele não dava azo a ter um fim. Deixava-se existir, com a
mesma inércia que o crescer das unhas.
— Eu
lhe perdoo ter mentido sobre o seu curso. Não me posso esquecer é
de outra coisa.
Ergue-se
a custo e retira do armário a esquecida pasta do médico.
Aparatosamente deixa tombar todo seu conteúdo. Envelopes diversos se
espalham pelo chão.
— Você
nunca enviou nenhuma das minhas cartas. Esta é que é a grande
mentira!
— Eu
estava à espera de ir à cidade.
— Pois
agora vai jurar que envia esta carta, a minha carta de despedida de
Isadora.
—
Prometo que envio.
— Estes
são os meus últimos cravos vermelhos.
Mia
Couto, in Veneno de Deus, remédio do Diabo
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