quarta-feira, 30 de maio de 2018

Retirada imperial

É, talvez, controverso se a violência no interior dos Estados aumentou ou diminuiu desde 1945. O que ninguém pode negar é que a violência internacional atingiu o menor índice de todos os tempos. Possivelmente o exemplo mais óbvio é o colapso dos impérios europeus. Ao longo da história, os impérios esmagaram rebeliões com mão de ferro, e, quando seu dia chegara, um império em decadência usava de todo o seu poder para se salvar, normalmente afundando em um banho de sangue. Sua derrocada final levava, no mais das vezes, à anarquia e a guerras de sucessão. Desde 1945, a maioria dos impérios optou por uma retirada precoce e pacífica. Seu processo de colapso se tornou relativamente rápido, calmo e ordenado.
Em 1945, a Grã-Bretanha governava um quarto do globo. Trinta anos depois, governava apenas algumas pequenas ilhas. Nesse período, se retirou da maioria de suas colônias de maneira pacífica e ordenada. Embora em alguns lugares, como a Malásia e o Quênia, os britânicos tenham tentado permanecer pela força das armas, na maioria dos lugares eles aceitaram o fim do império com um suspiro, e não com um ataque de fúria. Concentraram seus esforços não em manter o poder, mas em transferi-lo da maneira mais tranquila possível. Pelo menos parte dos elogios geralmente feitos a Mahatma Gandhi por seu credo não violento se deve, na verdade, ao Império Britânico. Apesar de muitos anos de luta cruel e quase sempre violenta, quando o Raj chegou ao fim os indianos não precisaram enfrentar os britânicos nas ruas de Délhi e de Calcutá. O lugar do império foi tomado por uma porção de Estados independentes, a maioria dos quais desde então desfrutou de fronteiras estáveis e, durante a maior parte do tempo, viveu em paz com seus vizinhos. É verdade, dezenas de milhares de pessoas pereceram nas mãos do Império Britânico ameaçado, e em vários focos de tensão sua retirada levou à eclosão de conflitos étnicos que cobraram centenas de milhares de vidas (em particular, na Índia). Mas, quando comparada à média histórica no longo prazo, a retirada britânica foi um exemplo de paz e ordem. O Império Francês foi mais teimoso. Seu colapso envolveu ações de retaguarda sangrentas no Vietnã e na Argélia que custaram centenas de milhares de vidas. Mas os franceses também se retiraram do restante de seus domínios de forma rápida e pacífica, deixando para trás Estados ordenados, em vez de um caótico salve-se quem puder.
O colapso soviético em 1989 foi ainda mais pacífico, apesar da eclosão de conflitos étnicos nos Bálcãs, no Cáucaso e na Ásia Central. Em nenhum momento anterior um império tão poderoso desapareceu de forma tão rápida e pacífica. O Império Soviético de 1989 não havia sofrido nenhuma derrota militar exceto no Afeganistão, nenhuma invasão externa, nenhuma rebelião, nem mesmo campanhas de desobediência civil em grande escala ao estilo das promovidas por Martin Luther King. Os sovietes ainda tinham milhões de soldados, dezenas de milhares de tanques e aviões, e armas nucleares suficientes para exterminar toda a humanidade várias vezes. O Exército Vermelho e os outros exércitos do Pacto de Varsóvia permaneceram leais. Se o último governante soviético, Mikhail Gorbachev, tivesse dado a ordem, o Exército Vermelho teria aberto fogo sobre as massas subjugadas.
Mas a elite soviética e os regimes comunistas na maior parte da Europa Oriental (a Romênia e a Sérvia foram exceções) escolheram não usar nem mesmo uma fração minúscula desse poder militar. Quando seus membros perceberam que o comunismo estava falido, renunciaram ao uso da força, admitiram seu fracasso, fizeram as malas e foram para casa. Gorbachev e seus colegas desistiram, sem lutar, não só das conquistas soviéticas da Segunda Guerra Mundial como também das conquistas czaristas, muito mais antigas, no Báltico, na Ucrânia, no Cáucaso e na Ásia Central. É assustador pensar no que poderia ter acontecido se Gorbachev tivesse se comportado como a liderança sérvia – ou como os franceses na Argélia.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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