domingo, 20 de maio de 2018

Prólogo de Zaratustra - 6

Mas então sucedeu algo que fez toda boca silenciar e todo olhar enrijecer. Nesse meio-tempo o equilibrista começara seu trabalho: surgira de uma pequena porta e andava sobre a corda que se achava estendida entre duas torres, acima da praça e do povo.  Quando estava no meio de seu caminho, abriu-se novamente a pequena porta e um rapaz de vestes coloridas, semelhante a um palhaço, pulou fora e seguiu o primeiro com passos rápidos. “Adiante, aleijado!”, gritou com voz terrível, “adiante, preguiçoso, muambeiro, cara-pálida! Para eu não te fazer cócegas com meu calcanhar! Que fazes aqui entre as torres? Teu lugar é na torre, devias ser trancafiado, estorvas o caminho de alguém melhor do que tu!” — E a cada palavra lhe chegava mais próximo; porém, quando estava a somente um passo do equilibrista, sucedeu a coisa pavorosa que fez toda boca silenciar e todo olhar enrijecer: — lançou um grito de demônio e saltou sobre aquele que lhe estava no caminho. Mas esse, vendo seu rival assim triunfar, perdeu a cabeça e a corda; desfez-se de sua vara e mais rapidamente do que ela mergulhou na profundeza, como um redemoinho de braços e pernas. A praça e o povo semelhavam o mar quando chega a tempestade: todos corriam e se atropelavam, sobretudo no local onde se precipitava o corpo.

Zaratustra ficou imóvel, porém, e justamente ao seu lado caiu o corpo, bastante ferido e quebrado, mas ainda vivo. Após um instante, a consciência retornou ao homem destroçado, e ele viu Zaratustra ajoelhado junto a si. “Que fazes aqui?”, disse ele afinal, “há muito tempo eu sabia que o demônio me passaria a perna. Agora ele me leva para o inferno; queres impedi-lo?”

“Por minha honra, amigo”, respondeu Zaratustra, “nada do que falas existe: não existe demônio nem inferno. Tua alma morrerá antes ainda que teu corpo: nada temas, portanto!”

O homem ergueu os olhos, desconfiado. “Se falas a verdade, então nada perco, ao perder a vida. Não sou muito mais que um animal a que ensinaram a dançar, com golpes de bastão e pequenos nacos de comida.”

“De maneira nenhuma”, disse Zaratustra; “fizeste do perigo o teu ofício, não há o que desprezar nisso. Agora pereces no teu ofício: por causa disso, eu te sepultarei com minhas próprias mãos.”

Depois que Zaratustra falou isso, o moribundo não respondeu mais; mas moveu a mão, como se buscasse a mão de Zaratustra para agradecer.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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