quinta-feira, 17 de maio de 2018

Prólogo de Zaratustra - 5

Depois de falar essas palavras, Zaratustra olhou novamente para o povo e calou. “Aí estão eles e riem”, falou para seu coração, “não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos.
Será preciso antes partir-lhes as orelhas, para que aprendam a ouvir com os olhos? Será preciso estrondear como os timbales e os pregadores da penitência? Ou acreditarão apenas num homem que balbucia?
Eles possuem algo de que se orgulham. Como chamam mesmo o que os faz orgulhosos? Chamam de cultura, é o que os distingue dos pastores de cabras.
Por isso não gostam de ouvir a palavra ‘desprezo’ quando se fala deles. Então falarei ao seu orgulho.
Então lhes falarei do que é mais desprezível: ou seja, do último homem.”
E assim falou Zaratustra ao povo:
É tempo de o homem fixar sua meta. É tempo de o homem plantar o germe de sua mais alta esperança.
Seu solo ainda é rico o bastante para isso. Mas um dia este solo será pobre e manso, e nenhuma árvore alta poderá nele crescer.
Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não lança a flecha de seu anseio por cima do homem, e em que a corda do seu arco desaprendeu de vibrar!
Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: tendes ainda caos dentro de vós.
Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do homem mais desprezível, que já não sabe desprezar a si mesmo.
Vede! Eu vos mostro o último homem.
Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?” — assim pergunta o último homem, e pisca o olho.
A terra se tornou pequena, então, e nela saltita o último homem, que tudo apequena. Sua espécie é inextinguível como o pulgão; o último homem é o que tem vida mais longa.
Nós inventamos a felicidade” — dizem os últimos homens, e piscam o olho.
Eles deixaram as regiões onde era duro viver: pois necessita-se de calor. Cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: pois necessita-se de calor.
Adoecer e desconfiar é visto como pecado por eles: anda-se com toda a atenção. Um tolo, quem ainda tropeça em pedras ou homens!
Um pouco de veneno de quando em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno por fim, para um agradável morrer.
Ainda se trabalha, pois trabalho é distração. Mas cuida-se para que a distração não canse.
Ninguém mais se torna rico ou pobre: ambas as coisas são árduas. Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda obedecer? Ambas as coisas são árduas.
Nenhum pastor e um só rebanho! Cada um quer o mesmo, cada um é igual: quem sente de outro modo vai voluntariamente para o hospício.
Outrora o mundo inteiro era doido” — dizem os mais refinados, e piscam o olho.
São inteligentes e sabem tudo o que ocorreu: então sua zombaria não tem fim. Ainda brigam, mas logo se reconciliam — de outro modo, estraga-se o estômago.
Têm seu pequeno prazer do dia e seu pequeno prazer da noite: mas respeitam a saúde.
Nós inventamos a felicidade” — dizem os últimos homens, e piscam o olho.

E aqui findou o primeiro discurso de Zaratustra, que é chamado de “prólogo”: pois nesse ponto interromperam-no os gritos e o júbilo da multidão. “Dá-nos esse último homem, ó Zaratustra” — clamavam as pessoas —, “torna-nos como esse último homem! E nós te presenteamos o super-homem!” E toda a gente exultava e estalava a língua. Zaratustra entristeceu-se, porém, e disse ao seu coração:
Eles não me compreendem: não sou a boca para esses ouvidos.
Vivi demasiado tempo nas montanhas, talvez, e demasiado escutei as árvores e os córregos: agora lhes falo como os pastores de cabras.
Plácida está minha alma, e clara como os montes na manhã. Mas eles acham que sou frio, e um zombador de terríveis pilhérias.
E agora eles olham para mim e riem: e, ao rir, também me odeiam. Há gelo no seu riso.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

Nenhum comentário:

Postar um comentário