segunda-feira, 28 de maio de 2018

O subsolo - 11

Conclusão final, senhores: é melhor não fazer nada! É melhor a inércia consciente! Pois, então, viva o subsolo! Apesar de eu ter dito que invejo o homem normal até a minha última gota de fel, nas condições em que o vejo, não quero ser ele. (Embora não pare de invejá-lo; não, não, o subsolo, em todo caso, é mais vantajoso!) Ao menos, lá é possível... Ah! Estou mentindo agora também! Porque eu mesmo sei, como dois mais dois, que o melhor não é o subsolo, mas outra coisa diferente, completamente diferente, pela qual eu anseio, mas que jamais encontrarei! Que vá para o diabo o subsolo!
Seria melhor até mesmo o seguinte: que eu mesmo acreditasse, ao menos um pouquinho, no que acabo de escrever. Juro aos senhores que não acredito em uma palavra sequer de tudo o que rabisquei até aqui! Ou melhor, eu acredito, talvez, mas, ao mesmo tempo, não sei por que, sinto e desconfio que estou mentindo desbragadamente.
Então, por que o senhor escreveu tudo isso? – dizem-me os senhores.
E se eu os deixasse presos por quarenta anos, sem nada para fazer, e, passado esse tempo, eu fosse visitá-los no seu subsolo para verificar o ponto a que chegaram? É admissível deixar um homem sozinho e sem ocupação durante quarenta anos?
Mas isso não é também vergonhoso, não é humilhante?! – talvez os senhores me digam, balançando a cabeça com desprezo. – O senhor tem sede de viver e ao mesmo tempo tenta resolver problemas vitais com uma barafunda lógica. E como são impertinentes e insolentes seus disparates e, ao mesmo tempo, como o senhor tem medo! O senhor diz absurdos e fica contente com eles; diz coisas insolentes, mas está o tempo todo com medo por causa delas e pede desculpas. O senhor afirma não ter medo de nada e, ao mesmo tempo, busca nossa aprovação. O senhor afirma que range os dentes e, ao mesmo tempo, fica fazendo graça para nos divertir. O senhor sabe que seus gracejos não são nada espirituosos, mas, ao que parece, está muito satisfeito com a sua qualidade literária. Talvez o senhor tenha sofrido realmente algumas vezes, mas o senhor não respeita nem um pouco o próprio sofrimento. Há alguma verdade no que diz, mas o senhor não tem pudor; pela vaidade mais mesquinha, o senhor fica exibindo sua verdade, no pelourinho, na feira... O senhor quer realmente dizer algo, mas, por medo, esconde sua última palavra, porque não tem coragem para proferi-la, e o que possui é apenas uma insolência covarde. O senhor se vangloria de ter consciência, mas só o que faz é vacilar, porque, embora sua inteligência funcione, seu coração está obscurecido pela depravação, e, sem um coração puro, é impossível uma consciência completa e justa. E como o senhor é importuno, insistente e afetado! Mentira, mentira, mentira!
Claro está que essas palavras dos senhores fui eu mesmo que acabei de inventar. Elas também vieram do subsolo. Durante quarenta anos seguidos fiquei escutando pela fresta as palavras que os senhores diziam. Eu mesmo as inventei, pois somente isso era possível inventar. É natural que eu as tenha aprendido de cor e que elas tenham adquirido forma literária...
Mas, será possível, será possível que os senhores sejam tão crédulos e imaginem que eu vá imprimir tudo isso e ainda lhes dar para ler? E eis ainda uma questão que preciso resolver: para que, na verdade, eu os chamo de “senhores”, para que dirijo-me aos senhores, como se de fato estivesse dirigindo-me a leitores? Confissões, como as que tenho a intenção de começar a narrar, não se publicam nem se dão a outros para que leiam. Eu, pelo menos, não sou uma pessoa tão segura e nem acho que isso seja necessário. Mas vejam os senhores: veio-me à cabeça uma fantasia e, custe o que custar, desejo realizá-la. Vou dizer-lhes do que se trata.
Entre as recordações de cada pessoa, há coisas que ela não conta para qualquer um, somente para os amigos. Há também aquelas que ela não conta nem para os amigos, somente para si mesma, e isso secretamente. Mas, finalmente, há também aquelas que o indivíduo tem medo de revelar até para si mesmo, e um homem respeitável tem tais coisas acumuladas em grande quantidade. E pode ser até mesmo assim: quanto mais respeitável ele é, mais coisas desse tipo ele tem acumuladas. Eu, pelo menos, só recentemente tomei coragem para recordar algumas das minhas aventuras passadas, as quais até agora tinha evitado com uma certa inquietação. E agora, quando não só recordei, como até me decidi a escrevê-las, agora exatamente quero tirar a prova: é possível alguém ser inteiramente sincero consigo mesmo e não temer toda a verdade? A propósito: Heine afirma que é quase impossível existirem autobiografias sinceras, porque na certa o ser humano mentirá, falando de si mesmo. Na opinião dele, por exemplo, Rousseau sem dúvida mentiu sobre si mesmo em suas Confissões e fez isso até deliberadamente, por vaidade. Estou convencido de que Heine está certo; entendo perfeitamente como, às vezes, alguém pode confessar uma série de crimes por pura vaidade e percebo até muito bem de que tipo pode ser essa vaidade. Mas Heine comentava sobre uma pessoa que fez uma confissão pública. No meu caso, escrevo só para mim, e declaro de uma vez por todas que, se escrevo como se me dirigisse a leitores, é unicamente por exibicionismo, e porque desse modo me é mais fácil escrever. Isso é apenas forma, uma forma vazia, eu nunca terei leitores. Já havia declarado isso...
Não quero que nada me cerceie na redação de minhas notas. Não vou estabelecer ordem nem sistema. Escreverei tudo o que me vier à memória. Mas, por exemplo, alguém poderia implicar com o que eu disse e me perguntar: se o senhor realmente não conta com leitores, então por que está agora fazendo tratos consigo mesmo e, ainda por cima, por escrito, dizendo que não vai introduzir nenhuma ordem ou sistema, que vai escrever aquilo de que se lembrar, etc.? Por que está dando explicações? Por que está se desculpando?
Esperem, já vou responder.
Há, neste caso, toda uma psicologia. Talvez, inclusive, eu seja simplesmente covarde. Pode ser também que eu imagine de propósito um público na minha frente para me comportar mais decentemente enquanto escrevo. Pode haver umas mil razões.
Mas eis ainda uma questão: para que e por que eu, de fato, desejo escrever? Se não é para um público, então não seria possível guardar tudo na memória, sem pôr no papel?
Certamente, senhores. Mas no papel ficará, de certo modo, mais solene. O papel inspira respeito, serei mais exigente comigo mesmo, o estilo lucrará. Além disso, escrevendo, talvez eu sinta de fato alívio. Neste momento, por exemplo, uma recordação antiqüíssima me oprime. Ela me veio à memória com nitidez há alguns dias e desde então não me larga, como uma melodia aborrecida que não sai da cabeça. Entretanto, é necessário livrar-me dela. Tenho centenas de recordações desse tipo, mas de vez em quando alguma se destaca das outras e começa a me afligir. Por alguma razão, creio que, escrevendo-a, conseguirei livrar-me dela. Por que não tentar?
Finalmente: sinto-me entediado, pois fico o tempo todo sem fazer nada. O ato de anotar é, de certo modo, um trabalho. Dizem que o homem se torna bom e honesto com o trabalho. Bom, pelo menos, eis aí uma chance.
Agora está caindo uma neve quase molhada, amarela, turva. Ontem caiu também, nos dias anteriores também. Creio que foi por causa da neve molhada que me lembrei da anedota que agora não quer desgrudar-se de mim. Então, que isso se transforme numa novela sobre a neve molhada.
Dostoievski, in Notas do subsolo

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