quarta-feira, 23 de maio de 2018

Juiz de Paz

O juiz de paz chegou cedo ao cartório. Era dia de muito casamento — o santo da folhinha ajudava. Aquele cartório! Feio, desarrumado como todos os cartórios. E por que se casam tantas pessoas no Brasil? Por que estão fazendo sempre a mesma besteira? Não aprendem?
O oficial-maior apareceu vinte minutos depois, para desagrado do juiz de paz. Quando o magistrado chega — mesmo sendo juiz de paz, a majestade é uma só — o cartório deve estar preparado como um templo, os acólitos em seus lugares. Mas o oficial-maior é mulher, e mulher não tem jeito não.
Quantos, hoje?
Dezessete.
Barbaridade. Trinta e quatro noivos, suas famílias e testemunhas espremendo-se na salinha e nos corredores, fazendo barulho de motor. O juiz de paz não pensou na renda, pensou na amolação.
Silêncio!
A energia da voz e da campainha fez estremecer os nubentes. Moças nervosas ficaram com medo — de quê? É tudo tão inseguro hoje em dia, nunca se sabe se haverá mesmo casamento ou se, à última hora…
Chamado o primeiro par, rapaz e moça aproximam-se um tanto estúpidos, como acontece nessas ocasiões, e sentam-se. O oficial-maior anota nomes e endereços das testemunhas. O juiz manda que todos se levantem e é obedecido, menos pelo oficial-maior.
A senhora não vai se levantar?
Não.
Como juiz, ordeno ao sr. oficial-maior que se levante e proceda à leitura do termo.
Vou ler sentada.
Não ouviu minha ordem?
Não recebo ordens do senhor.
De quem recebe, então?
Do doutor corregedor da justiça.
Pois então não há casamento.
Os noivos entreolham-se, estupefatos. A noiva, lacrimejante:
Não faz assim com a gente, seu juiz!
Sinto muito, mas todos os casamentos estão suspensos.
Um rumor de onda batendo na praia acolhe a declaração. O oficial-maior continua sentado(a). Interessados apelam.
Por que a senhora não se levanta? Que que custa!
Já fiquei sentada muitas vezes, hoje é que ele implicou. Não pode fazer isso.
Não impliquei nada. É da lei.
Implicou. Vive implicando comigo. Sou uma pobre moça solteira, mas não admito ser humilhada.
O corregedor, procurado pelo telefone, não foi encontrado. O juiz de direito da vara de família atendeu depois de muito número discado, e respondeu que só resolvia consulta por escrito.
O juiz de paz estava sem cabeça para redigir. O oficial-maior, passado o instante de bravura, chorava baixinho. Três partidos se haviam formado. Não se humilha uma mulher. A um juiz não se desacata. Ela devia ceder. Ele é que devia. Que é que a gente tem com isso?
Se quiser, eu mesma redijo para o senhor.
Era o oficial-maior, oferecendo colaboração ao juiz de paz.
Ele pensou que fosse ironia, mas o tom era sincero. Começaram a elaborar a consulta. Ela achava as palavras por ele. E foi escrevendo por conta própria: a serventuária rebelde tinha vinte anos de serviço, estava cansada, reumática. Enquanto podia levantar-se, não deixou de fazê-lo. Agora, era um sacrifício. Ele olhava-a escrever e tinha uma ruga na testa.
Pode parar. Não vou fazer consulta nenhuma.
Ela encarou-o.
Reconheço que tenho andado nervoso, essa dor de cabeça constante. Vou ao médico. Tenho sido um juiz de paz ranheta. Me perdoe. Também essa vida que eu levo, tão sozinho…
O oficial-maior retirou o papel da máquina. Os dois voltaram a seus postos, e os noivos foram chegando e casando. Só um havia desistido — Deus sabe por quê. Durante o quinto casamento, o oficial-maior fez menção de levantar-se, como quem diz: agora, chega; mas o juiz, com um gesto, aconselhou-lhe ficar como estava. Três meses depois, o juiz de paz estava casado com o oficial-maior.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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