quinta-feira, 17 de maio de 2018

Dilema

I
Do alto da colina, Justo Calisto avista os barcos que se distanciam da cidade. No meio da tarde, ele tenta divisar, ao longe, os dois rios que se encontram e separam-se, como duas vidas divididas, inconciliáveis. É domingo. O remo ali na praia, ao lado da canoa emborcada. Ele olhou para trás: as fábricas, a Fábrica. Depois olhou o horizonte e esperou. Para matar o tempo ou alimentar uma ilusão, lembrou-se do que acontecera no domingo passado.

II
No último domingo, antes de voltar para casa, ele viu o barco passar perto da margem. O mesmo barco vermelho de outros domingos, a mesma mulher sentada na proa, para quem acenara com ânsia. A mulher de branco apenas levantara a cabeça para o alto da colina. O vento agitava-lhe os cabelos. Ele não pôde ver com nitidez o rosto dela: o barco vermelho continuou a navegar rumo ao encontro dos rios. Ainda era dia quando ele voltou ao bairro próximo da zona industrial. Caminhou na rua asfaltada, passando ao lado de fábricas silenciosas, os portões fechados, vigiados por homens armados. Ao entrar no bairro, evitou andar até a margem do igarapé. No descampado os vizinhos jogavam bola, e ele imaginou a cena noturna dos outros domingos, como uma repetição enfadonha.
No descampado os homens bebiam, se insultavam, brigavam. Os mais fracos dormiam no lodo. Na boca da noite os urubus saltitavam ao redor dos corpos ou se empoleiravam nas traves, as asas abertas. Era uma cena que se repetia, sempre aos domingos. Justo Calisto observava os vizinhos correrem no descampado e os imaginava caídos, vencidos. Não falou com eles, entrou calado na palafita, deu aos dois pássaros engaiolados pedaços de banana; outro pássaro, avermelhado, pousou no batente da janela, perto da rede. Um vento morno crispou a água suja do igarapé. Vai chover, pensou. O inverno: chuva ruidosa, chuva de canivete. Vinte invernos neste bairro, nesta palafita. Quando chove assim, o igarapé transborda, o descampado vira uma lagoa, o cheiro de podridão empesta o lugar. Na casa vizinha, ouviu os sons de uma televisão, um chiado no ruído da chuva. Ouviu também gritos de crianças, choro de crianças. Logo, logo a água vai se infiltrar no assoalho da casa. Justo Calisto deita-se na rede da varandinha da palafita e espera a chuva passar, espera o domingo escurecer e ir embora, como alguém que detesta este dia.
Quando estiou, a televisão e as crianças calaram, mas logo uma assuada na vizinhança cortou o silêncio do entardecer. Viu uma roda de gente agitada: dois homens retornavam do descampado puxando um bicho da beira do igarapé. O jacaretinga se contorceu, enlameado, desfigurado, as mandíbulas presas por um pedaço de arame farpado. Um dos homens caceteou a cabeça do bicho; o outro lhe furou os olhos com uma antena enferrujada. Alguém acendeu uma lamparina: dois pequenos círculos acenderam que nem brasa. Olhos quase mortos. O jacaretinga estremeceu, rabeou, descaiu o focinho ferido. A lâmina de um terçado abriu-lhe o ventre, a mesma lâmina decepou-lhe o rabo. Justo Calisto encarou os dois matadores. Nesses atos tentamos esquecer nossos crimes, pensou. Um homem baixo e franzino cortou a cabeça do réptil, lançou-a no igarapé e soltou um guincho de triunfo. A terra molhada sorveu a poça de sangue. Os outros homens fecharam a cara, se afastaram, sumiram. Justo Calisto voltou à varandinha. Deitado na rede, ele esperou o sono, esperou o próximo fim de semana…

III
No começo da tarde deste domingo, ele abriu a gaiola: os dois pássaros voaram na mesma direção. Enrolou a rede em que dormira por mais de vinte anos e saiu de casa. Percorreu a pé o caminho que o separava da beira do rio. Agora, no alto da colina, ele pensa no que pode acontecer…
Ao avistar o barco vermelho, ele desceu a colina e aproximou-se da canoa. Mais perto dele, mais perto da margem, o barco diminuiu a marcha e parou. Então ele viu o rosto da mulher e quase ao mesmo tempo leu o nome de um rio na proa vermelha, o rio em que ele nascera. Justo Calisto teve a impressão de que esta seria a última viagem do barco vermelho. Ele não acenou para a mulher.
No interior da cabine, um velho segurava o timão. Agora, sob o sol fraco do entardecer, o rio parecia mais vasto, a água mais escura e espessa. O silêncio envolveu a atmosfera de mais um domingo que findava. Justo Calisto entrou na canoa e começou a remar, lentamente, rumo ao barco. Olhou para trás, viu pela última vez as fábricas, diminuídas pela distância. Quando a canoa alcançou a sombra do barco, ele parou de remar e saltou para o tombadilho. Depois, ele e a mulher, abraçados, viram a canoa flutuar à deriva, rio abaixo…
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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