quinta-feira, 17 de maio de 2018

Confraternização

Dr. Anselmo, eu...
Não me chame de doutor. Anselmo, Anselmo.
Anselmo, eu...
Tocão.
Como?
Meu apelido. Tocão. Me chame de Tocão.
Tocão.
Isso. E o seu, qual é?
O meu...?
Apelido.
Bom, em casa me chamam de Di.
Di! Maravilha. Viu só? Passamos o ano inteiro trabalhando juntos, nos tratando de doutor Anselmo e dona Dinorá, e só agora nos conhecemos de verdade. Sabe o que eu acho, dona Dinorá? Di? Que o apelido é o nome da alma. Sabendo o apelido de uma pessoa se conhece a sua alma. Tome mais champanhe.
Não, obrigada. Vou parar. Já bebi demais.
Tome! Sou eu que estou pagando. Eu não, a firma, mas fui eu que autorizei. Pedi do melhor. Foi um ano bom para a firma, vamos comemorar com o melhor. O melhor para todo mundo. Sabe, Bi?
Di.
Hein?
Doutor Anselmo, Tocão, acho melhor o senhor também parar...
Eu sei, eu sei. Já estou meio alto. Mas hoje é um dia especial. Um dia de festa. De contrafernização.
Confraternização.
Isso também. E sabe o que eu acho, Bi? Essa história. Nossos nomes. Doutor, dona, senhor pra cá, senhora pra lá... Sabe o que é isso? Não é formalidade. Não é respeito. É medo. É uma barreira que construímos em torno da nossa alma, para ninguém ver lá dentro. Nosso nome verdadeiro é o apelido. O meu, por exemplo. Sabendo que eu me chamo Tocão, você não sabe tudo a meu respeito? Não sabe exatamente como eu era, na infância? Como eu sou hoje? Lá dentro?
É...
Eu sou gente, Bi.
Di.
Pois é. E sabendo o seu apelido, eu sinto que sei tudo sobre você. De agora em diante, vamos nos chamar pelos apelidos. Todo mundo na firma. Sem medo. Não vai mais haver patrões nem empregados. Nem doutores, nem donas. De agora em diante, me chamem todos de Tocão.
Certo.
Porque eu sou um Tocão. Entendeu, Bi? O dr. Anselmo é um disfarce. O que eu sou mesmo é um Tocão. Me chame de Tocão.
Tocão.
Beba mais champanhe.
Não, não, eu já...
Bi, escute. Eu quero lhe mostrar o meu umbigo.
O que é isso, dr. Anselmo?
Não, eu faço questão. Vou lhe mostrar o meu umbigo.
Não precisa, dr. Anselmo.
Eu quero lhe mostrar o meu umbigo. Afinal, a senhora vive me mostrando o seu.
É a moda. Umbigo de fora. É a moda. Eu não tinha intenção...
Eu sei. Mas eu ainda não tinha prestado atenção no seu umbigo. E hoje prestei. Foi por isso que eu quis ter esta conversa. O seu umbigo foi uma espécie de convite para a intimidade. Um convite para vencer o medo, para romper as barreiras e nos revelarmos um ao outro. Para nos conhecermos como gente. Pelos nossos apelidos, nossos nomes verdadeiros, não nossos nomes oficiais. Por favor, segure o meu copo.
Dr. Anselmo...
Preciso abrir a camisa.
Eu preferia que o senhor não...
Onde está ele? Eu sei que tenho um umbigo. Ou será que deixei em casa? Arrá! Aqui está ele. Lhe apresento. O meu umbigo.
Muito prazer.
Você não está olhando.
Estou, estou.
O que você acha dele?
Muito simpático.
Vamos aproximar nossos umbigos, Bi.
Não! Por favor, dr. Anselmo...
Tocão.
Por favor, Tocão.
Para nossos umbigos contrafernizarem! Eles são a prova da nossa humanidade comum, Bi. Eles vão selar o início de uma nova era dentro da firma, talvez o início de uma nova era para o mundo. Deixe meu umbigo tocar o seu, Bi. Bi, onde você vai? Bi!
O senhor precisa de alguma coisa, dr. Anselmo?
Obrigado, dona Márcia. Só preciso de outro copo. E não me chame de doutor. Olha aí, gente. Contrafernização. Contrafernização!
Luís Fernando Veríssimo, in Amor veríssimo

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