domingo, 20 de maio de 2018

Comunidades imaginadas

Assim como a família nuclear, a comunidade não poderia desaparecer completamente do mundo sem algum substituto emocional. Hoje, os mercados e os Estados atendem a maior parte das necessidades materiais que um dia eram atendidas pelas comunidades, mas também precisam proporcionar vínculos tribais.
Os mercados e os Estados fazem isso promovendo “comunidades imaginadas” que contêm milhões de estranhos e que são adaptadas para as necessidades nacionais e comerciais. Uma comunidade imaginada é uma comunidade de pessoas que não se conhecem de fato, mas imaginam que sim. Tais comunidades não são uma invenção nova. Reinos, impérios e igrejas funcionaram por milênios como comunidades imaginadas. Na China antiga, dezenas de milhões de pessoas se viam como membros de uma única família, tendo o imperador como pai. Na Idade Média, milhões de muçulmanos devotos imaginavam que eram todos irmãos e irmãs na grande comunidade do Islã. Mas, ao longo da história, tais comunidades imaginadas exerceram um papel secundário com relação às comunidades íntimas de várias dezenas de pessoas que se conheciam muito bem. As comunidades íntimas preenchiam as necessidades emocionais de seus membros e eram essenciais para a sobrevivência e o bem-estar de todos. Nos últimos dois séculos, as comunidades íntimas definharam, e as comunidades imaginadas preencheram o vácuo emocional.
Os dois exemplos mais importantes para a ascensão de tais comunidades imaginadas são a nação e tribo de consumidores. A nação é a comunidade imaginada do Estado. A tribo de consumidores é a comunidade imaginada do mercado. Ambas são comunidades imaginadas porque é impossível que todos os consumidores em um mercado ou que todos os membros de uma nação realmente conheçam uns aos outros da maneira como os aldeães se conheciam no passado. Nenhum alemão pode conhecer intimamente os outros 80 milhões de membros da nação alemã, nem os outros 500 milhões de consumidores que habitam o Mercado Comum Europeu (que primeiro se transformou na Comunidade Europeia e finalmente se tornou a União Europeia).
O consumismo e o nacionalismo fazem um esforço extra para nos levar a imaginar que milhões de estranhos pertencem à mesma comunidade que nós, que todos temos um passado em comum, interesses em comum e um futuro em comum. Não se trata de uma mentira. Trata-se de imaginação. Assim como o dinheiro, as empresas de responsabilidade limitada e os direitos humanos, nações e tribos de consumidores são realidades intersubjetivas. Só existem em nossa imaginação coletiva, mas seu poder é imenso. Contanto que milhões de alemães acreditem na existência de uma nação alemã, fiquem entusiasmados ao ver símbolos nacionais alemães, contem mitos nacionais alemães e estejam dispostos a sacrificar dinheiro, tempo e força bruta em nome da nação alemã, a Alemanha continuará sendo uma das potências mais fortes do mundo.
A nação faz tudo que está a seu alcance para ocultar seu caráter imaginado. A maioria das nações afirma ser uma entidade natural e eterna, criada em alguma época primordial por uma combinação do solo da pátria mãe com o sangue do povo. Mas tais afirmações são quase sempre exageradas. Existiam nações no passado distante, mas sua importância era muito menor do que hoje, porque a importância do Estado era muito menor. Um residente da Nuremberg medieval pode ter sentido certa lealdade para com a nação alemã, mas sentia muito mais lealdade para com sua família e comunidade local, que cuidavam da maior parte de suas necessidades. Além disso, qualquer que tenha sido a importância das nações antigas, poucas delas sobreviveram. A maioria das nações existentes só surgiu após a Revolução Industrial.
O Oriente Médio fornece muitos exemplos. As nações síria, libanesa, jordaniana e iraquiana são produto de fronteiras aleatórias desenhadas na areia por diplomatas franceses e britânicos que ignoraram a história, a geografia e a economia da região. Esses diplomatas determinaram, em 1918, que as pessoas do Curdistão, de Bagdá e de Basra seriam, dali em diante, “iraquianas”. Foram primordialmente os franceses que decidiram quem seria sírio e quem seria libanês. Saddam Hussein e Hafez al-Assad tentaram o possível para promover e reforçar sua consciência nacional fabricada por britânicos e franceses, mas seus discursos bombásticos sobre a natureza supostamente eterna das nações iraquiana e síria eram palavras vazias.
Nem é preciso dizer que as nações não podem ser criadas do nada. Os que trabalharam duro para construir o Iraque ou a Síria usaram matérias-primas culturais, históricas e geográficas reais – algumas das quais têm séculos ou mesmo milênios de existência. Saddam Hussein cooptou a herança do califado abássida e do Império Babilônico e inclusive batizou uma de suas unidades blindadas de Divisão Hamurabi. Mas isso não faz da nação iraquiana uma entidade antiga. Se eu asso um bolo com farinha, óleo e açúcar, todos ingredientes guardados na minha despensa há dois meses, isso não significa que o bolo propriamente dito tenha dois meses.
Nas últimas décadas, as comunidades nacionais têm sido cada vez mais eclipsadas por tribos de consumidores que não se conhecem intimamente, mas partilham dos mesmos interesses e hábitos de consumo e, portanto, se sentem parte da mesma tribo de consumidores – e se definem como tais. Isso soa muito estranho, mas estamos cercados de exemplos. Os fãs da Madonna, por exemplo, constituem uma tribo de consumidores. Eles se definem em grande medida por aquilo que compram: ingressos para shows da Madonna, CDs da Madonna, pôsteres e camisetas da Madonna e inclusive toques de celular de músicas da Madonna. Fãs do Fluminense, vegetarianos e ambientalistas são outros exemplos. Eles também são definidos acima de tudo por aquilo que consomem. É a base de sua identidade. Um vegetariano alemão pode muito bem preferir uma vegetariana francesa a uma carnívora alemã como esposa.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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