A
figueira começou a dar os seus primeiros figos; as vinhas, em flor,
exalam o seu perfume. Levanta-te, amiga minha, formosa minha, e vem.
(Cântico
dos Cânticos, II, 13)
Não
foi a dúvida e sim a raiva que me levou a embarcar no mesmo dia com
destino a Juparassu, para onde deveria ter seguido minha namorada,
segundo a carta que recebi.
Sim,
a raiva. Uma raiva incontrolável, que se extravasava ao menor
movimento dos outros viajantes, tornando-me grosseiro, a ponto dos
meus vizinhos de banco sentirem-se incomodados, sem saber se estavam
diante de um neurastênico ou débil mental.
A
culpa era de Dalila. Que necessidade tinha de me escrever que na
véspera de partir do Rio dançara algumas vezes com o ex-noivo? Se
ele aparecera por acaso na festa, e se fora por simples questão de
cortesia que ela não o repelira, por que mencionar o fato?
Não
me considero ciumento, mas aquela carta bulia com os meus nervos.
Fazia com que, a todo instante, eu cerrasse os dentes ou soltasse uma
praga.
Acalmei-me
um pouco ao verificar, pela repentina mudança da paisagem, que
dentro de meia hora terminaria a viagem e Juparassu surgiria no cimo
da serra, mostrando a estaçãozinha amarela. As casas de campo só
muito depois, quando já tivesse desembarcado e percorrido uns dois
quilômetros a cavalo. A primeira seria a minha, com as paredes
caiadas de branco, as janelas ovais.
Deixei
que a ternura me envolvesse e a imaginação fosse encontrar, bem
antes dos olhos, aqueles sítios que representavam a melhor parte da
minha adolescência.
Sem
que eu percebesse, desaparecera todo o rancor que nutrira por Dalila
no decorrer da viagem. Nem mesmo a impaciência de chegar me
perturbava. Esquecido das prevenções anteriores, aguardava o
momento em que eu apertaria nos braços a namorada. Cerrei as
pálpebras para fruir intensamente a vontade de beijá-la, abraçá-la.
Nada falaria da suspeita, da minha raiva. Apenas diria:
— Vim
de surpresa para ficarmos noivos.
O
chefe do trem arrancou-me bruscamente do meu devaneio:
— O
senhor pretende mesmo desembarcar em Juparassu?
—
Claro. Onde queria que eu desembarcasse?
— É
muito estranho que alguém procure esse lugar.
Não
sabendo a que atribuir a impertinência e a estranheza do funcionário
da estrada, resmunguei um palavrão, que o deixou confuso, a pedir
desculpas pela sua involuntária curiosidade.
Juparassu!
Juparassu surgia agora ante os meus olhos, no alto da serra. Mais
quinze minutos e estaria na plataforma da estação, aguardando
condução para casa, onde mal jogaria a bagagem e iria ao encontro
de Dalila.
Sim,
ao encontro de Dalila. De Dalila que, em menina, tinha o rosto
sardento e era uma garota implicante, rusguenta. Não a tolerava e os
nossos pais se odiavam. Questões de divisas dos terrenos e pequenos
casos de animais que rompiam tapumes, para que maior fosse o ódio
dos dois vizinhos.
Mas,
no verão passado, por ocasião da morte de meu pai, os moradores da
Casa Azul, assim como os ingleses das duas casas de campo restantes,
foram levar-me suas condolências, e tive dupla surpresa: Dalila
perdera as sardas, e seus pais, ao contrário do que pensava, eram
ótimas pessoas.
Trocamos
visitas e, uma noite, beijei Dalila.
Nunca
Juparassu apareceu tão linda e nunca as suas serras foram tão
azuis.
*
* *
Logo
que desci na estaçãozinha, solícito, o agente tomou-me as malas:
— O
senhor é o engenheiro encarregado de estudar a reforma da linha,
não? Por que não avisou com antecedência? Arrumaríamos o nosso
melhor quarto.
— Ora,
meu amigo, não sou engenheiro, nem pretendo ver obra alguma.
—
Então, o que veio fazer aqui?
Refreei
uma resposta malcriada, que a insolente pergunta merecia, notando ser
sincero o assombro do empregado da estrada.
—
Tenciono passar as férias em minha casa
de campo.
— Não
sei como poderá.
— É
coisa tão fantástica passar o verão em Juparassu? Ou, quem sabe,
andam por aqui temíveis pistoleiros?
—
Pistoleiros não há, mas acontece que as
casas de campo estão em ruínas.
Tive
um momento de hesitação. Estaria falando com um cretino ou fora
escolhido para vítima de desagradável brincadeira? O homem,
entretanto, falava sério, parecia uma pessoa normal. Achei melhor
não insistir no assunto:
— Quem
me alugaria um cavalo, para dar umas voltas pelas vizinhanças?
A
resposta me desconcertou: não existiam cavalos no lugar.
— E
para que cavalos, se nada há de interesse para ver nos arredores?
Procurei
tranquilizar o meu interlocutor, pois pressentia estar sob suspeita
de loucura. Menti-lhe, dizendo que há muitos anos não vinha àquelas
paragens. O meu objetivo era apenas o de rever lugares por onde
passara em data bem remota.
O
agente sentiu-se aliviado:
— O
senhor me assustou. Pensei que conversava com um paranoico. — E,
amável, se prontificou a me acompanhar no passeio. Recusei o
oferecimento. Necessitava da solidão a fim de refazer-me do impacto
sofrido por acontecimentos tão desnorteantes.
Não
caminhara mais de vinte minutos, quando estaquei aturdido: da minha
casa restavam somente as paredes arruinadas, a metade do telhado
caído, o mato invadindo tudo.
Apesar
das coisas me aparecerem com extrema nitidez, espelhando uma
realidade impossível de ser negada, resistia à sua aceitação.
Rodeei a propriedade e encontrei, nos fundos, um colono cuidando de
uma pequena roça. Aproximei-me dele e indaguei se residia ali há
muito tempo.
— Desde
menino — respondeu, levantando a cabeça.
—
Certamente conheceu esta casa antes dela
se desintegrar. O que houve? Foi um tremor de terra? — insisti, à
espera de uma palavra salvadora que desfizesse o pesadelo.
— Nada
disso aconteceu. Sei da história toda, contada por meu pai.
A
seguir, relatou que a decadência da região se iniciara com uma
epidemia de febre amarela, a se repetir por alguns anos, razão pela
qual ninguém mais se interessou pelo lugar. Os moradores das casas
de campo sobreviventes nunca mais voltaram, nem conseguiram vender as
propriedades. Acrescentou ainda que o rapaz daquela casa fora levado
para Minas com a saúde precária e ignorava se resistira à doença.
— E
Dalila? — perguntei ansioso.
Disse
que não conhecera nenhuma pessoa com esse nome e foi preciso
explicar-lhe que se tratava da moça da Casa Azul.
— Ah!
A noiva do moço desta casa?
— Não
era minha noiva. Apenas namorada.
— Não?
Será que... — deixou a frase incompleta. — É o senhor, o jovem
que morava aqui?
Para
evitar novas perguntas, preferi negar, insistindo na pergunta
anterior:
— E
Dalila?
—
Morreu.
Fiquei
siderado ao ver ruir a tênue esperança que ainda alimentava. Sem me
despedir, retomei a caminhada. Os passos trôpegos, divisando
confusamente a vegetação na orla da estreita picada, subi até uma
pequena colina. Do alto da elevação, avistei as ruínas da Casa
Azul. Avistei-as sem assombro, sem emoção. Cessara toda a minha
capacidade emocional. Os meus passos se tornaram firmes novamente, e
de lá de dentro dos escombros eu iria retirar a minha amada.
Descolorida
e quieta a Casa Azul está na minha frente. Caminho por entre os seus
destroços. A escadinha de tijolos semidestruída. Aqui nos beijamos.
Beijamo-nos no alpendre, cheio de trepadeiras, cadeiras de balanço,
onde, por longas horas, ficávamos assentados. Depois do alpendre
esburacado, o corredor. Dalila me veio fortemente. Subo a custo os
degraus apodrecidos da escada de madeira. Chego ao quarto dela: teias
de aranha. Vazio, vazio, meu Deus! Grito: Dalila, Dalila! Nada. Corro
aos outros quartos. Todos vazios. Só teias de aranha, as janelas
saindo das paredes, o assoalho apodrecendo.
Desço.
Grito mais: Dalila, Dalila! Grito desesperado: Dalila, minha querida!
O silêncio, um silêncio brutal responde ao meu apelo. Volto ao
quarto dela: parece que Dalila está lá e não a vejo. O seu corpo
miúdo, os olhos meigos, os cabelos dourados. Abraça-me e não sinto
os seus braços.
A
noite já estava aparecendo por entre o teto fendido. Grito ainda:
Dalila, Dalila, meu amor! Corta-me a agonia. Corro desvairado.
Murilo
Rubião, in Obra completa
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