segunda-feira, 28 de maio de 2018

A missão de inquérito

O que não pode florir no momento certo acaba explodindo depois.
Outro dito de Tizangara

A vila se formigava em roda vivente. Constava que, da capital, não tardaria a chegar a importantíssima delegação com soldados nacionais e os das Nações Unidas. Vinha igualmente um chefe maiúsculo do comando das tropas internacionais. Com os militares estrangeiros vinham o ministro não governamental e uns tantos chefes de departamentos vários. E mais um tal Massimo Risi, um italiano, homem sem gerais patentes. Seria esse que iria estacionar uns tempos em Tizangara.
Eu já estava na praça, perfilado junto com os chefes da administração local. Éramos a comissão de recepção, faríamos as honras à terra. O administrador Estêvão Jonas se retorcia nervoso. Ele mandava e desmandava, desfazia trinta por nenhuma linha.
Alinhados! — repetia ele, comandando nossas posições.
Mesmo atrapalhado, ele se mostrava ainda vaidoso, peito mais arredondado que o pombo em arrasto de asa. Assim emperuado, sua pele reluzia ainda mais escura, repuxados os brilhos de sua fronte.
De entre a multidão figurava um bem visível cartaz com enormíssimas letras: “Boas vindas aos camaradas soviéticos! Viva o internacionalismo proletário!”. O administrador deu ordem instantânea de se mandar retirar o dístico. E que ninguém entoasse vivas a ninguém. O povo andava bastante confuso com o tempo e a atualidade.
Distribuam os nossos dísticos, esses que mandámos pintar ontem.
É melhor não, Excelência.
E porquê? — É que as tintas desapareceram lá do armazém.
E os panos?
Os panos não desapareceram. Os panos roubaram.
Estava-se nessas desconformidades quando surgiu em nossa frente um cabrito malhado. O bicho destoava das solenidades. O administrador arreganhou em surdina:
Quem é esse cabrito?
De quem é ... — o secretário corrigiu, discreto.
Sim, de quem é essa merda?
Esse cabrito não será dos seus, Excelência?
A ordem para evacuar dali o caprino veio tarde de mais: as sirenes já invadiam a praça. Num segundo, as velozes viaturas encheram a praça de poeira e ruído. De súbito, a travagem aflita. E escutou-se um baque surdo, o fragor de um carro embatendo num corpo. Era o cabrito. O bicho voou que nem uma garça felpuda e se estatelou num passeio próximo. Não morreu instantâneo. Antes, ficou por ali, manchado e desmanchado, amplificando seus berros pelo mundo. Com o embate, um chifre saltou com tal ímpeto que veio esbarrar no adjunto Chupanga. O homem pegou no desirmanado corno e entregou-o ao administrador.
Excelência, isto é seu.
Estêvão Jonas, em fúria, atirou o chifre para o chão. Puxou-me pelo braço, num esticão, e segredou a ordem árida:
Vá ali e mate-me de vez esse filho da puta desse cabrito.
Impossível obedecer. Já os visitantes saíam dos carros com imponência e o administrador, em transe, repetiu o despropositado comando:
Alinhados!
Pensando que a ordem lhe era destinada, o povo se ajeitava em filas quase indianas. Logo a praça se arranjou a jeito de cerimônia militar. Estêvão Jonas passou às apresentações. Sua voz, contudo, era continuamente abafada pelos balidos do cabrito.
Este aqui é...
Mééé!
Sabotagem ideológica do inimigo, foi assim que, mais tarde, o administrador classificou as interferências sonoras. Quem mais quereria atrapalhar o esplendor daquela solenidade? Na circunstância, porém, havia que desembaraçar o momento, sacudir poeira e sobrelevar. O ministro tomou conta da situação e emitiu despacho:
Vamos já ao local da ocorrência.
Em volta, foi difícil encontrar espaço. O povo se conglomerava, espantado de presenciar tal desfile de eminências. Tudo aquilo chamado por um sexo masculino, ainda para mais jazendo em paz? E às centenas se aglomeraram os tizangarenses. Uns se admiravam de me ver ali, entre os notáveis. Passara eu a partilhar da panela dos graúdos, a beneficiar do fogão deles? Outros me acenavam com improvisado respeito, não fosse eu um mandador de chuva.
Os recém-chegados foram perdendo segurança à medida que forçavam caminho até ao local da descoberta. Ali, entre as massas, nem se vislumbra quem é o devido quem. Dona Ermelinda, ao lado de seu esposo, lhe bichanava:
Reparou nas sirenes? Não será que lhes pode pedir para eles as deixarem aqui?
Aflitos, os estrangeiros comprimiam as máquinas fotográficas de encontro às barrigas, não fosse o diabo destecê-las. No meio da turbulência, entre puxões e empurrões ainda se escutavam os comandos do administrador:
Alinhados!
Enfim, chegaram todos à estrada onde jazia o anônimo sexo. Formaram círculo e o silêncio deu um nó em volta. Assim, calados, pareciam prestar sentidas homenagens. O fato de o dito apêndice haver resistido aquele tempo sem ter sido removido pelos bichos era assunto que convocava as imaginações.
Até que o representante do governo central, depois de muito esfregar o vazio dos bolsos, tossiu e metafisicou hipótese: aquilo, em plena estrada, era um órgão ou organismo? E se era órgão, assim díspar e ímpar, de quem havia sido cortado? E logo se acenderam despropositados debates. Via-se que era o poeirar de vozes, só para espantar silêncio. Até que o administrador local sugeriu:
Com o devido respeito, Excelências: e se chamássemos Ana Deusqueira?!
Mas, essa Ana, quem é? — inquiriu o ministro.
Vozes se cruzaram: como se podia não conhecer a Deusqueira? Ora, ela era a prostituta da vila, a mais competente conhecedora dos machos locais.
Prostitutas? Vocês já têm cá disso?
E o administrador, empoleirado na vaidade, murmurou:
É a descentralização, senhor ministro, é a promoção da iniciativa local! — e repetia, enfunado: — A nossa Ana!
O ministro ainda achou por bem refrear aquele entusiasmo crescente:
A nossa, quer dizer...
Mas o administrador já ia de vela e viagem. E prosseguia: que essa Ana era uma mulher às mil imperfeições, artista de invariedades, mulher bastante descapotável. Quem, senão ela, podia dar um parecer abalizado sobre a identidade do órgão? Ou não era ela perita em medicina ilegal?
Está compreender, Excelência? Chamamos a Ana Deusqueira para ela identificar o todo pela parte.
Pela parte?
Pela... pela coisa, quer dizer, refiro-me à questão pendente.
E logo despachou mandamentos, em trejeitos militares, não fossem os estrangeiros pensar que o martelo não tinha cabo:
Senhor adjunto, vá chamar Ana Deusqueira.
Já o mensageiro partia, fulminante, quando estacou e arrepiou caminho. E perguntou ao administrador, em voz pública:
Desculpe, Excelência, mas onde poderei encontrar a cuja convocada?
Estêvão Jonas pigarreou, atrapalhaço. Ora, ele, por que raio ele tinha que saber do paradeiro dessa uma criatura? E chamando o adjunto mais perto lhe bichanou:
Seu burro! Vá aquele sítio que você já sabe.
Foi uma fração de nada enquanto a ordem se cumpriu. O administrador, entretanto, deu de caras com a minha pessoa e me ordenou:
Traduza, traduza para o senhor Risi!
Não vale a pena, ele está acompanhar tudo.
Ao menos, faça um resumo. Aproveita para introduzir... quer dizer, para explicar a nossa Deusqueira.
Não deu tempo. Já Ana Deusqueira se anunciava, com menos sirene que a delegação, mas com maiores espampanâncias. A mulher exibia demasiado corpo em insuficientes vestes. Os tacões altos se afundavam na areia como os olhos se espetavam nas suas curvaturas. O povo, em volta, olhava como se ela fosse irreal. Até recentemente não existira uma prostituta na vila. Nem palavra havia na língua local para nomear tal criatura. Ana Deusqueira era sempre motivo de êxtase e suspiração.
A mulher se desculpou quando se apercebeu da oficiosa expectativa. Chupanga, todo manteigoso, bichanou no ouvido da prostituta a breve explicação das circunstâncias. Afinal, não fora convocada para os usuais préstimos. Ana recebeu a surpresa, sempre em pose. Depois, amoleceu os charmes e agravou a voz. Ao fim ao cabo, vinha envergada a despropósito. Para quê a arte se falta o artifício? A mulher passou a mão pela cabeleira postiça e suspirou:
Txarra! Estava pensar era uma chamada de serviço. E com taxa de urgência.
Soltou a gargalhada, em afronta. Depois, ela se aproximou da esposa do administrador e a contemplou em desafio. Media-lhe as alturas, descomparando-a. Quem, afinal, era a mais-que-primeira dama? Queixo altivo, em meio riso:
Como está a nossa Primeira Senhora?
Dona Ermelinda tinha os olhos que cuspiam. Seu esposo a afastou, precavendo desmandos.
Volte para casa, mulher.
É melhor ela ficar — corrigiu a prostituta —, e irmos juntas lá ver os restos do acidente. Quem sabe ela pode ajudar a identificar a coisa?
O confronto ficou-se por ali. Porque os estrangeiros fardados rodearam a prostituta, fungando da intensidade dos seus aromas. A delegação se interessava: seria zelo, simples curiosidade? E pediram-lhe documentos comprovativos da sua rodagem: curriculum vitae , participação em projetos de desenvolvimento sustentável, trabalho em ligação com a comunidade.
Duvidam? Sou puta legítima. Não uma desmeretriz, dessas. Até já dormi com...
Adiante, adiante — apressou o ministro, que logo iniciou uma dissertação sobre vagos assuntos como as previsões da chuva, o estado miserável das estradas e outras nenhumarias.
Ana Deusqueira a tudo respondia, em verbo e gesto, olhos postos no italiano. Depois do inquérito, ela se aproximou de Massimo Risi e lhe segredou no ouvido. O que ela disse ninguém sabe. O povo só via o branco ficar vermelho e voltar a enlividecer, cara pendurada no rosto.
Depois, a prostituta deu costas à delegação e aproximou-se do polémico achado, no chão da estrada. Mirou o órgão desfigurado, tombado como um verme flácido. Joelhou-se e, com um pauzinho, revirou o hífen carnal. Em volta de Ana Deusqueira se formou um círculo, olhos de ansiosa expectativa. Impôs-se silêncio. Até que o chefe da polícia local inquiriu:
Cortaram esta coisa do homem ou vice-versa?
Essa coisa, como o senhor polícia chama, essa coisa não pertence a nenhum dos homens daqui.
Está certa?
Com a máxima e absoluta certeza.
Cumprida a examinação, Ana Deusqueira sacudiu as mãos e abanicou a cabeleira desfrisada como se fosse uma rainha. O ministro chamou à parte o delegado das Nações Unidas. Conferenciaram-se:
Desculpe lhe dizer, mas eu acho que é mais um desses casos ...
Quais casos? — perguntou o estrangeiro.
Desses das explosões.
Não me diga uma coisa dessas!
Digo-lhe que é mais um explodido.
Não me venha com essa merda dos explodidos. Desculpe lá, mas essa eu não engulo.
Mas eu, como ministro, recebo informações...
Escute bem: já desapareceram cinco soldados. Cinco! Eu tenho que dar relatório aos meus chefes em Nova Iorque, não quero estórias nem lendas.
Mas o meu governo...
O seu governo está a receber muito. Agora são vocês a dar qualquer coisa em troca. E nós queremos uma explicação plausível!
E o representante do mundo impôs condição: exigia-se um relatório bilingue, previsões orçamentais e prestação de imediatas contas. O chefe da missão espumava as raivas:
É que já é de mais: cinco, com este seis!
Seis soldados das Nações Unidas tinham-se eclipsado, não deixando nenhum traço senão um rio de delirantes boatos. Como podiam soldados estrangeiros dissolver-se assim, despoeirados no meio das Áfricas, que é como quem não diz, no meio de nada? O ministro, amargado, respondeu:
Está certo, vou falar com a pu... com a prostituta.
Isso, fale. O que eu quero é esclarecer a situação. E ouça: quero tudo gravado. Não quero blá-blá-blá, estou cansado de folclore.
Mas os depoimentos são todos unânimes: os soldados explodem!
Explodem? Como é que explodem sem minas, sem granadas, sem explosivos? Não me venha com conversa. Quero tudo gravado, aqui.
Entregou um gravador e uma caixa de cassetes. Sobrou um silêncio grave. Para disfarçar as aparências de submissão, o ministro foi rodando os dedos pelos botões do aparelho. Súbito, soltou-se uma música do gravador, sons quentes desencadearam-se pelos ares e o povo, instantâneo, desatou a dançar. O universo, num segundo, se converteu numa infinita pista de dança. Atrapalhado, o ministro meteu os dedos pelas mãos, demorando a parar a fanfarra. A música lá silenciou e ainda ficaram uns pares rodopiando. Mais longe, o cabrito balia em gemidos mais e mais enfraquecidos.
O que é isto? — inquiriu um ilustre.
Não é nada, são crianças imitando... isto é, brincando — se apressou a declarar o administrador.
O responsável da ONU semelhava um dragão flamejando pelas narinas. Olhou o firmamento como se suplicasse compreensão divina. Chamou Massimo Risi e deu-lhe as rápidas e derradeiras instruções. Depois, entrou na espaçosa viatura, batendo a porta em fúria. Mas o jipe não pegou: nervoso do motorista, emagrecimento da bateria? O motor nhenhenhou-se em tentativas sucessivamente frustradas. O representante do mundo, de janelas fechadas, esperava certamente uma mão generosa para tchovar a viatura.
Mas o povo não se apressou a empurrar. O estrangeiro ficou de fronha no vidro, sem coragem para mendigar ajudas. Passou-se um pedaço. Na face do internacional consultor, gotas de suor escorriam mais velozes que os lentos minutos do tempo.
Foi Ana Deusqueira quem emitiu um estalar de dedos. Num segundo, mãos às dezenas se juntaram nas traseiras do veículo. Enquanto o povo empurrava a viatura, a prostituta enfeitou-se como se estivesse emoldourada, mãos sobre as coxas. Altiva, ficou olhando a comitiva desaparecer sem dignar um aceno de despedida. Quando a poeira reassentou, ela ainda soslaiou um breve olhar na estrada. Confirmou, então, que Massimo Risi ficara na vila, juntamente com uma porção de chefes. Ana Deusqueira se aproximou dele e disse:
Morreram milhares de moçambicanos, nunca vos vimos cá. Agora, desaparecem cinco estrangeiros e já é o fim do mundo?
O italiano permaneceu mudo. Ana Deusqueira se encostou nele, dengosamente, e prometeu que ajudaria a esclarecer o mistério. Por exemplo, ela podia adiantar um segredo do que observara do resto do malogrado. Por acaso, o estrangeiro notara o tamanho daquele resto? A esperada revelação se fez ouvir:
Esse homem aí era do sexo maisculino.
E a prostituta deflagrou uma gargalhada enquanto afastava uma imaginada poeira dos fios escorridos de sua falsa cabeleira.
Mia Couto, in O último voo do flamingo

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