quarta-feira, 2 de maio de 2018

A menininha e o gerente

Não, paizinho, não! Quero ir com você!
Mas meu bem, não posso levar você lá. O lugar não é próprio. Não vou demorar nada, só dez minutos. Seja boazinha, fique me esperando aqui.
Não, não! — a garotinha soluçava. Agarrou-se à calça do pai como quem se agarra a uma prancha no mar. Ele insistia:
Que bobagem, uma menina de sua idade fazendo um papelão desses.
Você não volta!
Volto, ora essa, juro que volto, meu amor.
Prometendo, ele passeava o olhar pela rua, impaciente. Ela baixara a cabeça, chorando. Estavam diante da papelaria. O gerente assistia à cena. O homem aproximou-se dele:
Faz-me o obséquio de tomar conta de minha filha por alguns instantes? Vou a um lugar desagradável, não posso levá-la comigo.
Mas…
Quinze minutos no máximo. É ali adiante. Muito obrigado, hem?
E sumiu. A garotinha continuava de olhos baixos, imóvel, o dorso da mão esquerda junto à boca. O gerente passou-lhe a mão nos cabelos, de leve.
Vem cá.
Ela não se mexeu.
Como é que você se chama? Carmen? Luísa? Marlene?
Como não respondesse, o gerente foi desfiando nomes, sem esperança de acertar. Mas ao dizer “Estela”, a cabecinha moveu-se, confirmando.
Estela, você sabe que está com um vestido muito bonito?
Estela tirou a mão dos olhos, examinou o próprio vestido e não disse nada.
Mas o gelo fora rompido. Daí a pouco o gerente mostrava-lhe a caixa registradora e autorizava-a a marcar uma venda de duzentos cruzeiros.
Olha um gatinho. Ele mora aqui?
Mora.
E que é que ele come?
Papel.
Mentiroso!
Então pergunte a ele.
O gato acordou, deixou-se afagar e tornou a dormir, desta vez nos braços de Estela.
O gerente olhou o relógio; tinham se passado quinze minutos, o homem não aparecia. “Bonito se ele não vier mais. Que vou fazer com esta garotinha, na hora de fechar?”
Tentou lembrar o rosto do desconhecido; impossível. Já pensava em telefonar para a polícia, quando Estela o puxou pela perna:
Além da máquina e do gatinho, você não tem mais nada para me mostrar?
Ele abarcou com a vista a loja toda e sentiu-a mal sortida, pobre. “Eu devia ter aberto uma loja de brinquedos, pelo menos um bazar.” Experimentou com Estela o apontador de lápis, o grampeador. E o homem não vinha. É, não vem mais. Estela andava de um lado para outro, dona do negócio. Ele, inquieto.
Não mexa nas gavetas, filhinha.
Não sou sua filhinha.
Desculpe.
Desculpo se você deixar eu abrir.
Então deixo.
Dentro havia balões, estrelinhas, saldo do último Natal. E ele que não se lembrava daquilo. Estela riu de sua ignorância, e o homem não vinha. O movimento de fregueses declinava. Na calçada, as filas de lotação iam crescendo. Daí a pouco, a noite.
Estela soprou um balão, outro, quis soprar dois ao mesmo tempo. Um estourou. Ela assustou-se. Ele riu.
Se o homem não aparecesse mais, que bom! Aliás a cara dele era de calhorda. Ainda bem que me escolheu.” Levaria Estela para casa, a mulher não ia estranhar, fariam dela uma filha — a filha que praticamente não tinham mais, pois casara e morava longe, no Peru. E se o pai reclamasse depois? Ora, quem entrega sua filha a um estranho, diz que vai demorar quinze minutos, passa uma hora e não volta, merece ter filha?
O empregado arriava a cortina de aço quando apareceram duas pernas, um tronco inclinado, uma cabeça.
Dá licença? Demorei mais do que pensava, desculpe. Muito obrigado ao senhor. Vamos, filhinha.
O gerente virou o rosto, para não ver, mas chegou até ele a despedida de Estela:
Até logo, homem do balão!
E a filha ficou mais longe ainda, no Peru.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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