segunda-feira, 7 de maio de 2018

A carta

Ilustração: Everett Henry

Tivesse descido com o Capitão Ahab à sua cabine depois da tormenta que tomou lugar na noite seguinte à da impetuosa ratificação de seu propósito junto à tripulação, você o teria visto se dirigir a um armário entre os gios e, trazendo um enorme rolo franzido de cartas marítimas, espalhá-las diante de si sobre a mesa atarraxada ao chão. Em seguida, sentado diante delas, você o teria visto estudar atentamente as várias linhas e sombras que ali encontravam seus olhos; e com lápis lento mas firme traçar rotas adicionais em espaços que antes estavam em branco. Era possível, às vezes, vê-lo em consulta às pilhas de velhos diários de bordo que o cercavam, nos quais estavam indicados as estações e locais em que, em diversas viagens anteriores de diversos outros navios, os cachalotes haviam sido capturados ou vistos.
Enquanto assim se ocupava, a pesada lamparina de estanho suspensa por correntes sobre sua cabeça balançava continuamente com o movimento do navio e jogava contínuos raios e sombras de linhas sobre seu cenho franzido, até quase fazer parecer que, enquanto ele próprio marcava linhas e rotas nos mapas franzidos, algum lápis invisível também traçava linhas e rotas no mapa profundamente marcado de seu rosto.
Mas não era nessa noite em particular que, na solidão da sua cabine, Ahab assim meditava sobre suas cartas. Quase todas as noites elas eram trazidas; quase todas as noites algumas marcas a lápis eram apagadas e substituídas por outras. Pois, com as cartas de todos os quatro oceanos diante de si, Ahab tecia um labirinto de correntes e sorvedouros, almejando uma realização mais segura daquele pensamento monomaníaco de sua alma.
Ora, para qualquer um que não estivesse plenamente familiarizado com os caminhos dos Leviatãs, poderia parecer uma tarefa absurda e irrealizável procurar assim uma solitária criatura nos oceanos inestocáveis deste planeta. Mas não era o que parecia para Ahab, que conhecia os modos de todas as correntes e marés; e assim, calculando os deslocamentos da comida do cachalote; e trazendo à mente com exatidão as estações de caça em determinadas latitudes; poderia chegar a suposições razoáveis, quase aproximadas da certeza, sobre o dia mais propício para estar numa ou noutra região atrás de sua presa.
Tão precisa, de fato, é a periodicidade com que o cachalote frequenta certas águas, que muitos pescadores acreditam que, pudesse ele ser observado e estudado no mundo inteiro; fossem os diários de bordo de toda rota baleeira cuidadosamente cotejados, então as migrações do cachalote corresponderiam invariavelmente às dos cardumes de arenques ou aos voos das andorinhas. Baseadas nessas indicações, foram feitas tentativas de criar elaborados mapas migratórios do cachalote.
Além disso, fazendo a passagem de uma região alimentícia para outra, os cachalotes, guiados por algum instinto infalível – digamos, quiçá por uma inteligência secreta da Divindade –, em sua maioria nadam em veias, como são chamadas; seguindo seu caminho ao longo de uma certa linha do oceano com uma exatidão tão constante que nenhum navio, com todas as cartas marítimas, jamais conseguiu fazer sua rota com um décimo dessa maravilhosa precisão. Ainda que, nesses casos, a direção tomada por qualquer baleia fosse tão reta como a régua de um topógrafo, e ainda que a linha de seu percurso fosse rigidamente confinada a seu rastro direto e reto, às vezes, a veia arbitrária, no qual o cachalote nessas ocasiões nada, em geral tem algumas poucas milhas de largura (mais ou menos, dado que a veia pode se expandir ou contrair); mas nunca excede o campo visual dos topos de mastro dos navios baleeiros, quando estes deslizam cautelosamente por esta zona mágica. A conclusão é que, em períodos especiais, dentro daquele limite, e ao longo daquele caminho, se pode procurar com grande confiança por baleias migrantes.
E assim, não apenas em horas confirmadas, em zonas de engorda bem conhecidas e delimitadas, Ahab podia ter esperanças de encontrar sua presa; mas também, cruzando as extensões mais vastas das águas entre essas áreas ele poderia, com sua habilidade, colocar-se em seu caminho no tempo e no espaço, de modo a não perder inteiramente a perspectiva de um encontro.
Havia uma circunstância que, à primeira vista, parecia dificultar seu plano delirante e, não obstante, metódico. Mas talvez não na realidade. Embora os gregários cachalotes tenham temporadas regulares em zonas específicas, contudo não se pode concluir que os bandos que assolaram esta ou aquela latitude ou longitude em tal ano, digamos, sejam exatamente idênticos aos que foram encontrados ali na estação precedente; embora existam alguns casos especiais e exemplos inquestionáveis em que o contrário se provou verdadeiro. Em geral, a mesma observação, apenas limitada a um campo menos extenso, aplica-se aos cachalotes solitários e eremitas, na maturidade ou na velhice. De tal modo que, se Moby Dick tivesse sido avistado, por exemplo, num ano anterior, na região chamada Seychelles no oceano Índico, ou na baía do Vulcão na costa Japonesa; disso não se depreendia que, se o Pequod visitasse um desses lugares na temporada correspondente seguinte, haveria infalivelmente de encontrá-lo ali. Assim, também, ocorria em outras zonas de engorda, onde houvesse por vezes se revelado. Mas todos esses lugares pareciam ser apenas estalagens do mar e pontos de parada casuais, por assim dizer, não seus locais de estada prolongada. E onde as chances de Ahab atingir seu objetivo foram mencionadas, alusões foram feitas apenas a alguma perspectiva de direção, antecedente, inusitada, antes de se chegar a um lugar e tempo determinados, em que todas as possibilidades se tornam de fato probabilidades, e, como gostava de pensar Ahab, toda probabilidade estaria a um passo da certeza. Esse lugar e esse tempo determinados se engendravam numa única frase técnica: a Temporada-no-Equador. Pois neste quando e onde, durante muitos anos consecutivos, Moby Dick havia sido avistado periodicamente, permanecendo por algum tempo naquelas águas, como o sol, na sua volta anual, se demora por um tempo previsto em cada um dos signos do Zodíaco. Havia sido ali, também, que a maior parte dos encontros fatais com a baleia branca ocorrera; ali as ondas guardavam histórias de seus feitos; ali também, naquele trágico local, o velho monomaníaco havia encontrado o terrível motivo de sua vingança. Mas, com o cauteloso entendimento e a assídua vigilância com que Ahab lançou sua alma arisca nessa caçada resoluta, ele não se permitiria depositar todas as suas esperanças no único fato supremo mencionado acima, ainda que propenso fosse a tais esperanças; nem mesmo na vigília de seu juramento ele conseguia tranqüilizar seu inquieto coração no sentido de adiar toda busca ocasional.
Ora, o Pequod partira de Nantucket no começo da Temporada-no-Equador. Nenhum esforço possível poderia, então, impedir seu comandante de completar a grande travessia rumo ao sul, dobrar o cabo Horn e então, pondo-se a sessenta graus de latitude, chegar ao Pacífico equatorial a tempo de cruzar a região. Por esse motivo, ele precisava esperar pela próxima estação. Mas a hora prematura da partida do Pequod talvez tenha sido corretamente escolhida por Ahab, haja vista esta complexidade de elementos. Pois um intervalo de 365 dias e noites estava diante dele; um intervalo que, em vez de suportar impacientemente em terra, ele passaria numa caçada variada; se por acaso a Baleia Branca, passando suas férias em mares muito distantes de sua costumeira zona de engorda, viesse a mostrar seu cenho franzido perto do golfo Pérsico, ou na baía de Bengala, ou nos mares da China, ou em quaisquer outras águas assoladas por sua espécie. De modo que Monções, Pampeiros, Noroestes, Harmatões, Alísios; todos os ventos, exceto o Levante e o Simum, poderiam impelir Moby Dick para o ziguezague errante da esteira do Pequod em sua circunavegação do mundo.
Mas, com tudo isso admitido; no entanto, reconsiderando-se com prudência e calma, parecia não passar de uma ideia insana, esta; que, no largo oceano imenso, uma única baleia, mesmo que fosse encontrada, pudesse ser reconhecida individualmente por seu caçador, quase como um Mufti de barbas brancas através das abarrotadas ruas de Constantinopla? Não. Pois o cenho nevado de Moby Dick, bem como sua nívea corcova não podiam ser senão inconfundíveis. E eu não marquei o cachalote? – murmuraria Ahab como se, depois de se debruçar sobre as cartas até bem depois da meia-noite, ele se deixasse levar por devaneios – marquei, e ele vai fugir? Suas grossas barbatanas estão furadas e fatiadas como a orelha de uma ovelha desgarrada! E, aqui, sua mente enlouquecida disparava numa corrida ofegante; até que o cansaço e a fraqueza de tanto pensar ultrapassavam-no; e no ar puro do convés ele procurava recuperar suas forças. Deus, que transes de tormentos suporta o homem consumido por um incomensurável desejo de vingança! Dorme com os punhos cerrados; e acorda com suas próprias unhas sangrentas cravadas nas palmas das mãos.
Muitas vezes, arrancado à noite de sua rede por sonhos exaustivos e insuportavelmente reais, os quais, continuando seus intensos pensamentos através do dia, carregavam esses pensamentos numa conflagração de frenesis, e os faziam rodopiar, voltas e mais voltas, em seu cérebro ardente, até que o próprio pulso de seu cerne vital se tornasse insuportável angústia; e quando, como às vezes era o caso, esses espasmos espirituais erguiam-lhe o ser de sua base, e um precipício parecia se abrir dentro dele, do qual disparavam labaredas e raios bifurcados, e demônios amaldiçoados convidavam-no a pular para junto deles; quando este inferno dentro de si escancarava suas bocas embaixo dele, um grito selvagem se ouviria pelo navio; e com os olhos dardejantes Ahab sairia de sua cabine, como se escapasse de um leito em chamas. Mas estes, talvez, em vez de serem os sintomas irreprimíveis de alguma fraqueza latente, ou do medo de seu próprio desenlace, fossem os mais puros indícios de sua intensidade. Pois, nessas ocasiões, o louco Ahab, o ardiloso, irreconciliável e tenaz caçador da baleia branca; esse Ahab que tinha ido para sua rede, não era o agente daquilo que o fazia fugir dali horrorizado mais uma vez. Esse agente era o eterno princípio vital ou alma dentro dele; e no sono, estando por algum tempo dissociado da mente discriminadora, que noutras ocasiões o usava como veículo ou como agente externo, esse princípio buscava escapar espontaneamente da escorchante contiguidade daquela coisa frenética, a qual, naquele momento, não integrava. Mas, como a mente não existe senão atada à alma, portanto deve ter sido essa, no caso de Ahab, quem dirigia todos os seus pensamentos e suas fantasias para seu propósito supremo; este propósito, por mera tenacidade da vontade, impingiu-se contra deuses e demônios numa espécie de ser independente. Assim, podia viver e queimar implacavelmente, enquanto a vitalidade comum à qual estava ligada fugia horrorizada daquele parto arbitrário e ilegítimo. Portanto, aquele espírito atormentado que observava do lado de fora dos olhos do corpo, aquele que parecia ser Ahab saindo de seu quarto, era naquela hora apenas uma coisa vazia, um ser sonâmbulo sem forma, um raio de luz viva, é certo, mas sem objeto para colorir, e, portanto, a própria vacuidade. Que Deus te ajude, velho: teus pensamentos criaram uma criatura em ti. E aquele cujo pensamento intenso o transformou num Prometeu; um abutre devora-lhe o coração eternamente; e esse abutre é a própria criatura por ele criada.
Herman Melville, in Moby Dick

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