Um
amigo paulistano andou pela Nova Zelândia e voltou encantado com a
beleza desse país.
“Wellington
é uma cidade linda”, ele disse. “As montanhas nevadas e a cor
esverdeada do oceano são também maravilhosas.”
Ele
morou por algum tempo com os maoris, saboreou comidas exóticas, como
poha titi e kai moana, participou de uma matariki
(a grande festa maori) e se sentiu um maori na ilha em que conviveu
por dois meses com “o povo da terra”. As descrições do meu
amigo eram tão vivas que eu me desloquei de São Paulo para Auckland
e Wellington, depois voei até à Ilha Sul, senti o sabor da carne do
pássaro titi, contemplei um horizonte de carneiros e por
pouco não me senti um neozelandês da cepa.
“E
você?”, ele me perguntou. “Por onde andou?”
“Fui
a Macatuba.”
“Macatuba?”
Meu
amigo não tinha ouvido falar dessa pequena cidade do interior
paulista. Na região de Macatuba, a lavoura de café foi substituída
por vastas plantações de cana-de-açúcar. No ar puro se intromete
a fuligem da queima dos canaviais, mas a cidadezinha, de fisionomia
simples e interiorana, me pareceu muito digna. Porque são dignos o
casario baixo e a praça arborizada no centro histórico, e também a
biblioteca pública, as padarias antigas, os moradores educados e
hospitaleiros.
Em
Macatuba ou Wellington deve haver um punhado de pessoas grossas e
brutas, mas não conheci essas pessoas, e delas quero distância. Ia
esquecer um detalhe paisagístico que me impressionou: no canteiro
central da avenida que atravessa a cidade há uma fileira de
palmeiras imperiais, plantadas durante a administração de algum
prefeito visionário. Na periferia de Macatuba não há favelas: a
cidade termina onde começa um campo verde e levemente ondulado.
Falei
sobre literatura para estudantes e professores de uma escola pública.
Havia também crianças, um grupo de operários, funcionários da
Biblioteca Carlos Drummond de Andrade e da secretaria municipal de
educação. Em algum momento pensei que poderia estar em Alvarães,
Urucurituba Velha ou outra cidadezinha do Amazonas.
Lugares
pequenos e isolados aparentam alguma semelhança entre si, mas cada
lugar é único, com personalidade, cultura e história próprias.
Tentei
responder às perguntas que me fizeram e, quase no fim do evento, uma
estudante pediu para que eu comentasse Vidas secas, um dos
livros lidos e estudados durante o semestre. Logo me lembrei da
primeira leitura desse romance de Graciliano Ramos. Eu estudava no
ginásio Pedro II em Manaus e devia ter a mesma idade da estudante
que me fizera a pergunta. Para um amazonense ou paulista, Vidas
secas causa estranhamento porque é ambientado numa região
totalmente diferente do Norte e Sudeste. Na obra-prima de Graciliano
a aridez da paisagem é inseparável da penúria; Fabiano e sua
família tentam sobreviver num ambiente de escassez extrema; a fome e
o sofrimento da cachorra Baleia não são menos tocantes do que a
miséria dos retirantes. A humilhação de Fabiano diante da
brutalidade do “soldado amarelo” é outra cena inesquecível, que
diz muito sobre a violência no Brasil. Mas há também, em Fabiano e
seus filhos, uma sede de saber, de aprender a ler e escrever, uma
vontade de compreender o mundo por meio da palavra escrita. Esse é o
abismo na vida de inúmeros brasileiros.
Na
segunda parte do belo poema “Reinos do amarelo”, João Cabral
escreveu esses versos: “O amarelo de ser analfabeto, de existir
aguado”. O poeta pernambucano por certo se refere aos Fabianos do
Nordeste, homens e mulheres cuja existência “aguada” lembra as
personagens de Vidas secas.
O
fato de um mesmo romance ser lido com prazer e interesse por jovens
amazonenses em 1966 e por jovens paulistas em 2009 revela que a boa
literatura tem o poder de viajar no tempo e no espaço. E é uma
prova de que o romance é um dos modos de ver e conhecer o mundo, e
também uma maneira de conhecermos a nós mesmos e aos outros.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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