Galopando
junto com o Sesfrêdo, larguei aquele lugar do Burití das Três
Fileiras. Pesares que me desenrolavam. E então eu decifrei meu
arranque de ter querido vir com o Sesfrêdo. Que ele, se sabia, tinha
deixado, fazia muitos anos, em terras do Jequitinhonha, uma moça que
apaixonava, e que era a mocinha de cabelos louros. ― Sesfrêdo, me
conta, me fala nesse acontecer... ― nem bem cem braças andadas eu
já pedia a ele. Era como se eu tivesse de caçar emprestada uma
sombra de um amor.
― E
você não volta para lá, Sesfrêdo? Você aguenta o existir? ―
perguntei. ― Guardo isso, para às vezes ter saudade. Berimbau!
Saudade, só... ― e ele alargou as ventas, de tanto riso. Vi que a
estória da moça era falsa. De inventar pouco se ganha. Regra do
mundo é muito dividida. O Sesfrêdo comia muito. E sabia assoviar
seguido, copiando o de muitos pássaros.
Ao
viável, eu tinha de atravessar as tantas terras e municípios,
jogamos uma viagem por este Norte, meia geral. Assim conheço as
províncias do Estado, não há onde eu não tenha aparecido. A que
viemos: por Extrema de Santa Maria ― Barreiro Claro ― Cabeça de
Negro ― Córrego Pedra do Gervásio ― Acarí ― Vieira ― e
Fundo ― buscando jeito de encostar no de São Francisco. Novidade
não houve. Passamos, numa barca. Só sempre bater para o nascente,
direitamente em cima de Tremedal, chamada hoje Monte-Azul. Sabíamos:
um pessoal nosso perpassava por lá, na Jaíba, até à Serra Branca,
brabas terras vazias do Rio Verde-Grande. De madrugada, acordamos em
sua janela um velhozinho, dono de um bananal. O velhozinho era amigo,
executou o recado. Daí a cinco madrugadas, retornamos. Era para vir
alguém, quem veio foi João Goanhá, próprio. E as descrições que
deu foram de todas as piores. Sô Candelário? Morto em tiroteio de
combate, metralhadoras tinham serrado o corpo dele, de esguêlha, por
riba da cintura. O Alípio, preso, levado para a cadeia de algum
lugar. Titão Passos? Ah, perseguido por uma soldadesca, tivera de se
escapar para a Bahia, pela proteção do Coronel Horácio de Matos.
Só mesmo João Goanhá era quem ainda estava. Comandava saldo de uns
homens, os poucos. Mas coragem e munição não faltavam. ― E os
Judas? ― perguntei, com triste raciocínio! por que era que os
soldados não deixavam a gente em paz, mas com aqueles não terçavam?
― Se diz que eles têm uma proteção preta... ― João Goanhá me
esclareceu! ― O Hermógenes fez o pauto. E o demônio rabudo quem
pune por ele... Nisso todos acreditavam. Pela fraqueza do meu medo e
pela força do meu ódio, acho que eu fui o primeiro que cri.
Ainda
disse João Goanhá que estávamos em brevidade. Porque ele sabia que
os Judas, reforçados, tinham resolvido passar o Rio em dois lugares,
e marcharem em cima de Medeiro Vaz, para acabar com ele de uma vez,
no país de lá. Onde era que o perigo, Medeiro Vaz precisava de nós.
Mas
não pudemos. Mal a gente se tocou, para a Cachoeira do Salto, e
esbarramos com tropa de soldados ― tenente Plínio. Foi fogo.
Fugimos. Fogo no Jacaré Grande ― tenente Rosalvo. Fogo no Jatobá
Torto ― sargento Leandro. Volteamos. Sobre aí, me senti pior de
sorte que uma pulga entre dois dedos. No formato da forma, eu não
era o valente nem mencionado medroso. Eu era um homem restante
trivial. A verdade que diga, eu achava que não tinha nascido para
aquilo, de ser sempre jagunço não gostava. Como é, então, que um
se repinta e se sarrafa? Tudo sobrevém. Acho, acho, é do
influimento comum, e do tempo de todos. Tanto um prazo de travessia
marcada, sazão, como os meses de seca e os de chuva. Será? Medida
de muitos outros igualasse com a minha, esses também não sentindo e
não pensando. Se não, por que era que eram aqueles aprontados
versos ― que a gente cantava, tanto toda-a-vida, indo em bando por
estradas jornadas, à alegria fingida no coração?
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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