quinta-feira, 19 de abril de 2018

O subsolo - 10

Os senhores acreditam no edifício de cristal, para sempre indestrutível, ou seja, acreditam num edifício ao qual ninguém poderá mostrar a língua mesmo às escondidas, nem fazer-lhe uma figa com a mão no bolso. Bom, eu tenho medo desse edifício, talvez porque ele seja de cristal e indestrutível através dos séculos e porque não será possível mostrar-lhe a língua nem às escondidas.
Vejam os senhores: se em vez de um palácio houver um galinheiro, e se começar a chover, talvez eu suba no galinheiro para não me molhar, mas nem assim vou achar que o galinheiro é um palácio, só por gratidão por ele ter- me protegido da chuva. Os senhores estão rindo e dizendo que num caso como esse tanto faz um palácio como um galinheiro. Sim, respondo eu, se o único objetivo de viver fosse não se molhar.
Mas o que fazer se meti na minha cabeça que vivo não somente para isso e que, se vou viver, quero que seja num palácio? Isso é o meu desejo, é a minha vontade. Os senhores só a arrancarão de mim quando tiverem modificado os meus desejos. Bem, façam a transformação, seduzam-me com outra coisa, deem-me outro ideal. Mas, por ora, não confundirei o galinheiro com um palácio. Admito até que o palácio de cristal seja uma quimera, que ele não esteja previsto pelas leis da natureza e que eu o inventei apenas devido à minha própria burrice e a alguns hábitos antigos, irracionais, próprios da nossa geração. Mas não me importa se ele não está previsto. Não dá na mesma se ele existe nos meus desejos, ou melhor, existe enquanto existem meus desejos? Os senhores talvez estejam rindo novamente? Riam à vontade; aceito qualquer caçoada. Mesmo assim, não direi que estou saciado se tenho fome; mesmo assim, sei que não me contentarei com um meio-termo, com um zero periódico constante, unicamente porque ele existe em decorrência das leis da natureza e existe realmente . Não aceitarei como triunfo de meus desejos um grande edifício com apartamentos para moradores pobres com contrato por mil anos e, para qualquer eventualidade, com a placa do dentista Wagenheim na entrada. Destruam meus desejos, apaguem meus ideais, mostrem-me alguma coisa melhor, e serei seu seguidor. Talvez os senhores digam que não vale a pena meter-se comigo; nesse caso, posso responder-lhes da mesma forma. Estamos argumentando seriamente, mas, se não quiserem conceder-me sua atenção, não hei de me humilhar. Tenho meu subsolo.
Por enquanto ainda estou vivo e tenho desejos – e que minha mão seque se eu colocar um tijolinho que seja nesse edifício! Não deem atenção ao fato de que há pouco renunciei ao palácio de cristal unicamente porque não será possível mostrar-lhe a língua. E de maneira nenhuma eu disse isso porque goste de mostrar a minha língua. Talvez eu tenha ficado irritado somente porque, dentre todos os seus edifícios, até agora não há nenhum ao qual não se possa não mostrá-la. Pelo contrário, por pura gratidão eu deixaria que me cortassem a língua, se as coisas se arranjassem de tal maneira que eu mesmo não tivesse mais vontade de mostrá-la. Não tenho nada a ver se isso não é possível e é preciso contentar-se com os apartamentos. Mas por que fui formado com tais desejos? Será possível que tenha sido somente para concluir que toda a minha conformação não passa de uma brincadeira de mau gosto? Será possível que todo o objetivo não passe disso? Não acredito.
E, ademais, saibam de uma coisa: estou convencido de que é preciso manter esses tipos do subsolo à rédea curta. Embora eles possam passar quarenta anos calados no subsolo, se conseguem sair para a claridade, ficam falando, falando, falando…
Dostoievski, in Notas do subsolo

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