terça-feira, 17 de abril de 2018

Conversa com o Diabo - I

Ele chegou e foi falando num tom queixoso:
Falam mal de mim. Dizem que gosto das coisas feias, que tenho cheiro de enxofre, chifres e patas de bode. Houve mesmo maledicentes que disseram que eu e Lutero inventamos a guerra química, pois nos atacávamos fazendo uso de gases malcheirosos expelidos pelo orifício inferior. O Riobaldo, conhecedor das tolices da cabeça dos homens, sabia do gosto que têm as pessoas pelas invencionices.”
Pra documentar o que ia dizer, abriu a mala 007 e tirou lá de dentro um volume do livro Grande sertão: veredas. Estava caindo aos pedaços, folhas soltas, folhas rasgadas.
O senhor me perdoe pelo estado do livro. É que ele é minha segunda Bíblia, do jeito como diz a Adélia. Todo dia eu leio um pedacinho. Nem sei mesmo quantas vezes já li o livro de cabo a rabo. Modéstia à parte, é preciso que se saiba que eu ajudei o João. Acham que ele ia inventar tudo aquilo sozinho? Quando termino de ler o livro, começo de novo. Pois não é assim que fazem os rios? A água sobe aos céus pra chover e começar tudo de novo... Está aqui, na página 59: ‘O senhor deve ficar prevenido: esse povo se diverte por demais com baboseira, dum traque de jumento formam um tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Depois eles mesmos acabam temendo e crendo...’. Confesso que nunca vi explicação mais curta e mais certa de como as crenças tomam conta dos pensamentos dos homens. Foi isso que fizeram comigo. Me pintaram feio. E porque me pintaram feio não me reconhecem quando apareço, bonito... Eu sou um esteta. Quando se trata das minhas roupas, eu consulto os especialistas. Não suporto roupa brega, especialmente batina e colarinho clerical...
Falam também mal de mim por aquilo que faço. Mas não sou culpado por cumprir o meu dever. Sou um simples ministro que tem de cumprir as ordens do patrão. E o faço honestamente. Tudo, menos corrupção. Se os homens lessem as Sagradas Escrituras com mais atenção fariam um juízo diferente a meu respeito.
O que é que está escrito nas Escrituras? Que Deus gosta de conversar comigo. Pede minha opinião. Pondera os meus conselhos.
As Escrituras Sagradas não mentem. São inspiradas pelo próprio Deus. Nisso creem católicos, protestantes e evangélicos. Se está escrito é verdade inspirada que tem de ser acreditada. Está lá no livro de Jó, capítulo 1, versículo 6: descreve uma grande reunião das hostes celestiais. Deus convocara todos os seus ministros para uma audiência. E eu era um deles. E notem: foi a mim, somente a mim, que ele dirigiu a palavra. ‘Você por aqui? Por onde é que você tem andado?’, ele perguntou. Respondi: ‘Tenho andado pelo mundo, fazendo meu trabalho de auditoria’. A seguir, ele me perguntou se, nas minhas andanças, eu havia observado Jó, seu filho querido. ‘Não há ninguém como ele. Homem puro, sem culpa, íntegro.’
Ele me perguntou. Tive de responder, dizendo a verdade. Ponderei que a piedade de Jó não era mais que sua obrigação porque ele, Deus, o havia enchido com as maiores mordomias. Havia lhe dado sete filhos, três filhas, sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas. Além disso, o seu calendário não era marcado por número de dias, mas pelo número de banquetes que aconteciam a intervalos determinados.
Lembrei então ao Criador que a qualidade de uma pessoa não pode ser medida pelas aparências. Aprendi isso de Jesus. Há aquele ditado ‘Por fora bela viola, por dentro pão bolorento’. Minha missão é ver se a bela viola não passa de pão bolorento disfarçado. Não acredito nas aparências. Jesus tinha a mesma opinião. Sabia que os homens são especialistas em enganação. Chamou os fariseus de sepulcros caiados. Por fora, as orações, os jejuns, os dízimos. Por dentro, arrogância, presunção, falta de amor. Por fora, branquidão; por dentro, podridão.
Alguns invejosos do meu prestígio com o Criador puseram-me maldosamente o apelido de ‘tentador’. Mas o que faço não é tentar; é testar. Haverá missão mais importante que essa? Sou o encarregado de dar o certificado de ISO 13.000 às pessoas. O teste tem por objetivo assegurar a boa qualidade do que está sendo testado. Tudo tem de passar por testes antes da aprovação. Até os cachorros sabem disso: antes de abocanhar eles cheiram. O seu olfato é o seu órgão de controle de qualidade. E esse é o meu ministério, o Ministério do Controle de Qualidade.”
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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