quinta-feira, 1 de março de 2018

Perfil de seres eleitos

Era um ser que elegia. Entre as mil coisas que poderia ter sido, fora se escolhendo. Num trabalho para o qual usava lentes, enxergando o que podia e apalpando com as mãos úmidas o que não via, o ser fora escolhendo e por isso indiretamente se escolhia. Aos poucos se juntara para ser. Separava, separava. Em relativa liberdade, se se descontasse o furtivo determinismo que agira discreto sem se dar um nome. Descontado esse furtivo determinismo, o ser se escolhia livre. Guiava-o a vontade de descobrir o próprio determinismo, e segui-lo com esforço, pois a linha verdadeira é muito apagada, as outras são mais visíveis. Separava, separava. Separava o chamado joio do trigo, e o melhor, o melhor o ser comia. Às vezes comia o pior. A escolha difícil era comer o pior. Separava perigos do grande perigo, e era com o grande perigo que o ser, embora com medo, ficava. Só para sopesar com susto o peso das coisas. Afastava de si as verdades menores que terminou não chegando a conhecer. Queria as verdades difíceis de suportar. Por ignorar as verdades menores, o ser parecia rodeado de mistério; por ser ignorante, era um ser misterioso. Tornara-se também: um sabido ignorante; um sábio ingênuo; um esquecido que muito bem sabia; um sonso honesto; um pensativo distraído; um nostálgico sobre o que deixara de saber; um saudoso pelo que definitivamente perdera; e um corajoso por já ser tarde demais.
Tudo isso, contraditoriamente, deu ao ser uma alegria sadia de camponês que só lida com o básico, embora não saiba qual é o filme do cinema. E tudo isso lhe deu a austeridade involuntária que todo trabalho vital dá. Escolha e ajuntamento não tinham hora certa de começar nem acabar, durava mesmo o tempo da vida. Tudo isso, contraditoriamente, foi dando ao ser a alegria profunda que precisa se manifestar, expor-se e se comunicar. Nessa comunicação o ser era ajudado pelo seu dom inato de gostar. E isso nem juntara nem escolhera, era um dom mesmo. Gostava da profunda alegria dos outros, por dom inato descobria a alegria dos outros. Por dom, era também capaz de descobrir a solidão que os outros tinham em relação à própria alegria mais profunda. O ser, também por dom, sabia brincar. E por nascença sabia que gestos, sem ferir com o escândalo, transmitiam o gosto que sentia pelos outros. Sem mesmo sentir que usava o seu dom, o ser se manifestava; dava, sem perceber quando dava, amava sem perceber que a isso chamavam amor. O dom, na verdade, era como a falta de camisa do homem feliz: como o ser era muito pobre e não tinha o que dar, o ser se dava. Dava-se em silêncio, e dava o que juntara de si, assim como quem chama os outros para verem também. Tudo isso com discrição, pois se tratava de ser tímido. Também era com discrição que o ser via no outros o que os outros tinham juntado deles mesmos; o ser sabia como era difícil descobrir a linha apagada do próprio destino, como era difícil não perdê-la cuidadosamente de vista, cobri-la com o lápis, errando, apagando, acertando.
Foi assim que o equívoco passou a rodear o ser. Os outros acreditaram de um modo quase simplório que estavam vendo uma realidade imóvel e fixa, e olhando o ser como se olha um retrato. Um retrato muito rico. Não compreenderam que para o ser, ter se reunido, fora trabalho de despojamento e não de riqueza. E, por equívoco, o ser foi eleito. Por equívoco o ser era amado. Mas sentir-se amado seria reconhecer-se a si mesmo no amor. E aquele ser era amado como se fosse um outro ser: como se fosse um ser eleito. O ser verteu as lágrimas de uma estátua que de noite na praça chora sem se mexer sobre o seu cavalo de mármore. Falsamente amado, o ser estava doendo todo. Mas quem o elegera não lhe dava a mão para descer do cavalo de dura prata, nem queria subir ao cavalo de pesado ouro. Dor de pedra era a do ser se quebrando sozinho na praça. Enquanto isso, os seres que o haviam elegido dormiam. De medo? mas dormiam. Nunca o escuro fora maior na praça. Até que amanhecia. O ritmo da terra era tão generoso que amanhecia. Mas de noite, quando chegava a noite, de novo escurecia. A praça de novo crescia. E de novo, os que o haviam elegido dormiam. De medo, talvez, mas dormiam. Tinham medo porque pensavam que teriam de morar na praça? Não sabiam que a praça fora apenas o lugar de trabalho do ser. Mas que, para andar, ele não queria uma praça. Os que dormiam não sabiam que a praça fora a guerra para o ser eleito, e que a guerra pretendera exatamente conquistar o lado de fora da praça. Pensavam, os que dormiam, que o ser eleito, para onde fosse, abriria uma praça como quem desenrola a tela onde pintar. Não sabiam que a tela, para o ser eleito, fora apenas o modo de calcular num mapa o mundo para onde o ser eleito queria ir. O ser preparara-se a vida toda para ser apto ao lado de fora da praça. É verdade que o ser, ao se sentir pronto assim como quem se banhou com óleos e perfumes, o ser eleito vira que não lhe havia sobrado tempo para aprender a sorrir. Mas é verdade que isso não incomodara o ser, pois que era ao mesmo tempo a sua grande expectativa: o ser havia deixado toda uma terra para lhe ser dada por quem quisesse lhe dar. O cálculo de sonho do ser fora deixar-se propositadamente incompleto.
Mas alguma coisa falhara. Quando o ser se via no retrato que os outros haviam tirado, espantava-se humilde diante do que os outros haviam feito dele. Haviam feito dele, nada mais, nada menos, que um ser eleito; isto é, haviam-no sitiado. Como desfazer o equívoco? Por simplificação e economia de tempo, haviam fotografado o ser. E agora não se referiam ao ser, referiam-se à fotografia. Bastava aliás abrir a gaveta para tirar de dentro o retrato. Qualquer um, aliás, conseguia uma cópia. Custava barato, aliás.
Quando diziam para o ser: eu te amo (mas e eu? e eu? por que não a mim também? por que só ao meu retrato?), o ser se perturbava porque nem ao menos podia agradecer: não tinha o que agradecer. E não reclamava, pois sabia que os outros não erravam por maldade, os outros tinham se dado a uma fotografia, e as pessoas não brincam: têm muito a perder. E não podiam arriscar: seria a fotografia, ou nada. O ser, por uma questão de bondade, tentava às vezes imitar a fotografia a fim de valorizar o que os outros tinham, isto é, a fotografia. Mas não conseguia manter-se à altura simplificada do retrato. E às vezes se confundia todo: não aprendia a copiar o retrato, e esquecera-se de como era sem o retrato. De modo que, como se diz do palhaço que ri, o ser às vezes chorava sob a sua caiada pintura de bobo da corte.
Então o ser eleito tentou um trabalho subterrâneo de destruição da fotografia. Fazia ou dizia coisas tão opostas à fotografia que esta se eriçava na gaveta. Na esperança de se tornar mais atual que a própria imagem, e esta ter que ser substituída por menos: pelo próprio ser. Mas o que aconteceu? Aconteceu que tudo o que o ser fazia só ia mesmo era retocar o retrato. O ser se tornara mero contribuinte. E contribuinte fatal: já não importava o que o contribuinte desse, não importava mais que o contribuinte não desse, tudo, e mesmo morrer, enfeitava a fotografia.
E assim foi indo. Até que, profundamente desiludido nas mais ingênuas aspirações, o ser eleito morria assim como se morre. Terminou tentando descer sozinho com grande esforço do cavalo de pedra, levou várias quedas, mas afinal aprendeu a passear sozinho. E, como se diz, nunca a terra lhe pareceu tão bela. Reconheceu que aquela era exatamente a terra para a qual se preparara: não errara, pois, o mapa do tesouro tinha as indicações certas. Passeando, o ser tocava em todas as coisas, e com um sorriso. O ser aprendera sozinho a sorrir. Um belo dia,…
Clarice Lispector, in Todos os contos

Nenhum comentário:

Postar um comentário