Nos
dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós
esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento
era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater,
silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele
trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
Era
preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado,
até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de
alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos
inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá
fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de
motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do
elevador.
Sabíamos
quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido
apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se
aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada.
Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos.
Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante.
Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e
esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse –
nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo
seria invadido.
No
segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o
leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta,
mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no
terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa
estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos
emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos,e às
vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era
um sonho.
O
relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das
janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia
dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada
no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e
vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa
na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo
estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios;
e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e
inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de
toalhas limpas, de lençóis de linho.
O
mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a
campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e
muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a
vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos,
os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar
olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo,
nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois,
nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e
tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
No
sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma
grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus
milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém,
ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na
penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante
uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava
subitamente a atacar.
O
telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos,
voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém
vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez;
experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada
vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá
dentro.
Ficávamos
quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse
para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que
fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce,
essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se
os meus cabelos já tivesse o cheiro de seus cabelos, como se o
cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
Nosso
corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles
tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que,
sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de
luz, eu a contemlava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus
olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas
pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o
amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro;
inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível
como um lento bailado.
Mas
naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza;
resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres;
vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de
estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um
vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na
cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus
sapatos.
Fiquei
um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem
sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive
uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande
caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos,
o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de
encontro ao peito, como se fosse a minha salvação.
E
levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas,
diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara;
alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e
então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta
registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso
mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre –
senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento
(achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via
assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde,
entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
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