...O futuro que estamos aqui inaugurando
é uma linha metálica. É alguma coisa que de propósito é
destituída. De tudo o que vivemos só ficará esta linha. Ela é o
resultado do cálculo matemático da insegurança: quanto mais
depurada, menos risco ela correrá, a linha metálica não corre o
risco da linha de carne. Só a linha metálica não dará aos abutres
do que comer. A nossa linha metálica não tem possibilidade de
putrefação. É uma linha que se garante eterna. Nós, os que aqui
estamos neste momento, a iniciamos com o propósito de que seja
eterna. Queremos uma linha metálica porque do princípio ao fim ela
é do mesmo metal. Não sabemos com muita certeza se essa linha será
forte bastante para salvar, mas é forte para durar. Para durar por
si só, como criação nossa. Ainda não se apurou se a linha vergará
ao peso da primeira alma que nela se pendure, como sobre os abismos
do Inferno.
Como é essa linha? Ela é escorregadia e
cilíndrica. E assim como o fio de cabelo, embora tão fino, tem
dentro de si lugar para ser oco – assim essa nossa linha é vazia.
Ela é deserta por dentro. Mas nós, que aqui estamos, temos um gosto
e uma nostalgia pelo deserto como se já tivéssemos sido
desapontados pelo sangue. Nós a deixaremos oca para que o futuro a
encha. Nós que, por vitalidade, poderíamos tê-la enchido conosco,
nós nos abstemos. Assim vós sereis a nossa sobrevivência, mas sem
nós: esta nossa missão é missão suicida. A linha metálica
eterna, produto de nós todos que aqui estamos reunidos neste
momento, essa linha metálica eterna é o nosso crime contra hoje e
também o nosso mais puro esforço. Nós a lançamos no espaço,
lançamo-la de nosso cordão umbilical, e o arremesso é para a
eternidade. A intenção oculta é que, ao arremessá-la, também o
nosso corpo – a ela preso pelo cordão umbilical – também o
nosso corpo seja arrancado do chão de hoje e se arremesse para o
espaço. Esta é a nossa esperança, esta é a nossa paciência. Este
é o nosso cálculo de eternidade. A missão é suicida: nós nos
voluntariamos para o futuro. Somos homens de negócio que não
precisam de dinheiro, mas da própria posteridade. O que temos tirado
para nós mesmos do presente não tem de forma alguma desgastado a
eternidade. Temos amado, mas isso não desgasta o futuro, pois temos
amado exclusivamente à moda de hoje, o que um dia será apenas carne
para os abutres; também temos comido pão com manteiga, o que também
não rouba do futuro, pois pão com manteiga é apenas o nosso
singelo prazer filial; e no Natal temos nos reunido à família. Mas
nada disso prejudica a linha eterna, que é o nosso verdadeiro
negócio. Somos os artistas do negócio e fazemos o sacrifício como
barganha: nosso sacrifício é o mais rendoso investimento. De vez em
quando, também sem desgaste da eternidade, nós nos damos à paixão.
Mas isso podemos tranquilamente tirar do presente para nós mesmos,
pois futuramente seremos apenas os mortos antigos dos outros. Não
faremos como os nossos próprios mortos antigos que nos deixaram, em
herança e peso, a carne e a alma, e ambas inacabadas. Nós, não.
Derrotados por séculos de paixão, derrotados por um amor que tem
sido inútil, derrotados por uma desonestidade que não tem dado
frutos – nós investimos na honestidade como sendo mais rendosa e
criamos a linha do mais sincero metal. Legaremos um duro e sólido
arcabouço que contém o vazio. Como no oco estreito de um fio de
cabelo, para os que vêm será árduo entrar dentro da linha
metálica. Nós, que agora a inauguramos, sabemos que entrar na nossa
linha metálica será a porta estreita dos que vêm.
Quanto a nós mesmos, assim como nossos
filhos nos estranham, a linha metálica eterna nos estranhará e terá
vergonha de nós, que a construímos. Estamos porém cientes de que
se trata de missão suicida de sobrevivência. Nós, os artistas do
grande negócio, sabemos que a obra de arte não nos entende. E que
viver é missão suicida.
Clarice Lispector, in Todos os
contos
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