Para
o poltrão, fugindo às obrigações, evadindo-se do cumprimento do
dever moral, desertando das responsabilidades, desaparecendo no
momento da angustiosa necessidade, dizemos que correu com a sela.
Originar-se-ia,
provavelmente, do ciclo da pastorícia, do costume de andar a cavalo,
daquele tempo em que os homens eram homens e viajavam a cavalo: “when
men were men and rode on horses”, na frase de Harold Preece.
O
cavalo, animal nobre, é credor de toda confiança. Quem o monta é o
cavaleiro e do seu uso, nas batalhas, provém a cavalaria, fundamento
aristocrático. O cavaleiro; apeando-se para qualquer necessidade
natural, vendo sua montada fugir, desertando do serviço, correndo
com a sela, deixando o senhor a pé, sem meios de condução no
meio da estrada, só poderia considerar o ato como prova da mais
baixa vilania e da mais cruel traição. Aplicaria a imagem ao homem
desidioso, destituído de vergonha, indigno do convívio com decência
e lealdade. Há, porém, outra explicação, histórica, comprovada e
real.
Quando
um fidalgo, desde o tempo das Cruzadas (séculos XI-XIII), portava-se
indecorosamente nas campanhas militares, com notória pusilanimidade,
tornando-se indesejável na classe nobre, era julgado pelos seus
pares e condenado à expulsão ignominiosa. Raspavam-lhe a cabeça
(descalvação), e daí a frase ainda corrente: ficou com a calva
à mostra; quebravam-lhe as esporas, les éperons brisés,
originando outra frase depreciativa: é um espora quebrada,
desbriado, traiçoeiro, sem pundonor, e ao fim obrigavam-no a sair da
assembleia carregando uma sela nos ombros. Saía, fugia, corria
com a sela. Estava, para sempre, desmoralizado.
Collin
de Plancy (Dictionnaire féodal I, Paris, 1819) informa que
durante a primeira dinastia dos Reis da França (IV ao VIII séculos)
havia um castigo idêntico, bem anterior. O francês culpado de algum
crime de vulto era condenado a percorrer determinada distância, nu
en chemise, levando um cão ou uma sela sur ses épaules.
Collin
de Plancy não estabelece distinção entre nobre e plebeu. Creio que
a punição reservar-se-ia preferencialmente para os fidalgos.
Transportar uma sela seria a redução simbólica do cavaleiro à
condição de animal de montada. Não era possível degradação mais
aviltante e anulação mais dolorosa de todos os direitos senhoriais.
Para um vilão, que não pertencesse à Cavalaria Viloa, a pena teria
significação menos humilhante e cruel. Tanto faria carregar uma
sela como a um cão.
Há
outras acepções de carregar a sela, estudadas no Anubis e
outros ensaios (245-250, ed. Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1951) e no
Superstições e costumes (235-239, ed. Antunes, Rio de
Janeiro, 1958), sem que tenham relação mais expressiva com o nosso
motivo presente.
Dizemos
correr com a sela invariavelmente dirigido a uma criatura
humana, faltosa e cobarde.
A
origem virá da penalidade medieval ou do simples ato de o cavalo
abandonar o cavaleiro, fugindo com todos os arreios?
Resta-nos
o direito da escolha.
Luís
da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz
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