Se
a felicidade se baseia em ter sensações agradáveis, para sermos
mais felizes precisamos reformular nosso sistema bioquímico. Se a
felicidade se baseia em sentir que a vida tem sentido, para sermos
mais felizes precisamos nos iludir de maneira mais eficaz. Existe uma
terceira alternativa?
Ambas
as visões anteriores partem do pressuposto de que a felicidade é
uma espécie de sensação subjetiva (de prazer ou de sentido) e,
para avaliar a felicidade das pessoas, tudo que precisamos fazer é
lhes perguntar como elas se sentem. Para muitos de nós, isso parece
lógico porque a religião dominante da nossa era é o liberalismo. O
liberalismo santifica as sensações subjetivas dos indivíduos. Vê
essas sensações como fonte suprema de autoridade. O que é bom e o
que é mau, o que é bonito e o que é feio, o que tem de ser e o que
não tem de ser, tudo isso é determinado por aquilo que cada um de
nós sente.
A
política liberal se baseia na ideia de que os eleitores sabem o que
é melhor e não há necessidade de um Grande Irmão para nos dizer o
que é bom para nós. A economia liberal se baseia na ideia de que o
cliente sempre tem razão. A arte liberal declara que a beleza está
nos olhos de quem vê. Os estudantes em escolas e universidades
liberais são ensinados a pensarem por si mesmos. “Just do it!”,
nos encorajam os comerciais. Filmes de ação, dramas de teatro,
telenovelas, romances e canções de sucesso pegajosas nos doutrinam
constantemente: “seja verdadeiro consigo mesmo”, “ouça a si
mesmo”, “siga seu coração”. Jean-Jacques Rousseau afirmou sua
visão de maneira mais clássica: “Tudo o que sinto ser bom, é
bom; tudo o que sinto ser mau, é mau”.
As
pessoas que foram criadas desde a infância à base de uma dieta de
tais slogans tendem a acreditar que a felicidade é uma sensação
subjetiva e que cada indivíduo sabe melhor do que ninguém se é
feliz ou infeliz. Mas essa visão é peculiar ao liberalismo. A
maioria das religiões e ideologias ao longo da história afirmou que
há parâmetros objetivos para o bem, para a beleza e para como as
coisas deveriam ser. Elas desconfiavam das sensações e das
preferências das pessoas comuns. Na entrada do templo de Apolo em
Delfos, os peregrinos eram recebidos pela inscrição: “Conhece-te
a ti mesmo!”. A implicação era que o indivíduo médio ignora seu
verdadeiro eu e, portanto, tende a ignorar a verdadeira felicidade.
Freud provavelmente concordaria.
E
também os teólogos cristãos. São Paulo e Santo Agostinho sabiam
perfeitamente bem que, se as pessoas fossem indagadas a respeito, a
maioria delas preferiria fazer sexo do que rezar para Deus. Isso
prova que fazer sexo é o segredo para a felicidade? Não de acordo
com São Paulo e Santo Agostinho. Só prova que a humanidade é
pecadora por natureza e que as pessoas são facilmente seduzidas por
Satã. De uma perspectiva cristã, a grande maioria das pessoas está
mais ou menos na mesma situação que viciados em heroína.
Imaginemos um psicólogo que embarca em um estudo de felicidade entre
usuários de drogas. Ele os interroga e cada um deles declara que só
é feliz quando injeta. O psicólogo publicaria um artigo declarando
que a heroína é o segredo para a felicidade?
A
ideia de que os sentimentos podem nos enganar não se restringe ao
cristianismo. Pelo menos quando se trata do valor de sentimentos, até
mesmo Darwin e Dawkins podem encontrar pontos em comum com São Paulo
e Santo Agostinho. De acordo com a teoria do gene egoísta, a seleção
natural faz com que as pessoas, assim como outros organismos,
escolham o que é bom para a reprodução de seus genes, mesmo que
isso seja ruim para elas como indivíduos. A maioria dos machos passa
a vida trabalhando, se preocupando, competindo e lutando, em vez de
desfrutar de felicidade pacífica, porque seu DNA os manipula para
atender seus próprios objetivos egoístas. Como Satã, o DNA usa
prazeres fugazes para tentar os indivíduos e subjugá-los.
Por
conseguinte, a maioria das religiões e filosofias adotou uma
abordagem muito diferente da do liberalismo para tentar compreender a
felicidade. A posição budista é particularmente interessante. O
budismo deu mais importância à questão da felicidade do que
possivelmente qualquer outro credo humano. Durante 2,5 mil anos, os
budistas estudaram de maneira sistemática a essência e as causas da
felicidade, e é por isso que, na comunidade científica, há um
interesse cada vez maior pela filosofia e pelas práticas de
meditação budistas. O budismo concebe a felicidade da mesma forma
que a biologia, isto é, entende que a felicidade resulta de
processos que ocorrem em nosso corpo, e não de acontecimentos no
mundo externo. No entanto, partindo da mesma noção elementar, o
budismo chega a conclusões muito diferentes.
De
acordo com o budismo, a maioria das pessoas identifica sensações
agradáveis como felicidade e sensações desagradáveis como
sofrimento. Em consequência, as pessoas atribuem enorme importância
ao que sentem, ávidas por vivenciar cada vez mais sensações
agradáveis e por evitar sensações desagradáveis.
Independentemente do que fizermos ao longo de nossa vida, seja coçar
a perna, remexer-se na cadeira, ou travar guerras mundiais, estamos
apenas tentando obter sensações agradáveis.
O
problema, de acordo com o budismo, é que os nossos sentimentos e
sensações são apenas vibrações transitórias, que mudam a cada
instante, como as ondas do oceano. Se há cinco minutos eu me sentia
alegre e cheio de propósito, agora esses sentimentos se foram, e
posso muito bem me sentir triste e deprimido. Então, se quero ter
sensações agradáveis, devo persegui-las constantemente, enquanto
trato de afastar as sensações desagradáveis. Mesmo que eu consiga
fazer isso, logo tenho de começar tudo de novo, sem jamais obter
recompensas duradouras por meus esforços.
O
que há de tão importante em obter tais prêmios efêmeros? Por que
se esforçar tanto para conquistar algo que desaparece quase no mesmo
instante em que surge? De acordo com o budismo, a raiz do sofrimento
não é a sensação de dor nem de tristeza e nem mesmo de falta de
sentido. Em vez disso, a raiz do sofrimento é essa incessante e
inútil busca de sensações efêmeras, que nos leva a estar em um
constante estado de tensão, inquietude e insatisfação.
Devido
a essa busca, a mente nunca está satisfeita. Mesmo quando sentimos
prazer, ela não está contente, porque teme que essa sensação logo
desapareça e deseja ardentemente que permaneça e se intensifique.
As
pessoas só se libertam do sofrimento não quando experimentam essa
ou aquela sensação de prazer, e sim quando entendem a natureza
transitória de todos os seus sentimentos e param de persegui-los.
Esse é o objetivo das práticas de meditação budistas. Na
meditação, espera-se que você observe sua mente e seu corpo com
atenção, que testemunhe o incessante ir e vir de todos os seus
sentimentos e perceba como é inútil persegui-los. Quando a busca
cessa, a mente fica tranquila, clara e satisfeita. Sentimentos de
todo tipo continuam indo e vindo – alegria, raiva, tédio, desejo
–, mas quando você para de ansiar por sentimentos específicos,
pode simplesmente aceitá-los tal como são. Você vive o momento
presente em vez de fantasiar sobre o que poderia ter sido.
A
serenidade resultante é tão profunda que aqueles que passam a vida
inteira em uma busca desenfreada por sensações agradáveis mal
conseguem imaginá-la. É como um homem parado durante décadas à
beira do mar, abraçando certas ondas “boas” e tentando impedir
que elas quebrem e simultaneamente repelindo as ondas “más” para
evitar que se aproximem. Dia sim, dia não, o homem está na praia,
indo à loucura com esse exercício inútil. Ele acaba por se sentar
na areia e apenas permite que cada onda venha e se vá a seu
bel-prazer. Que paz!
Essa
ideia é tão alheia à cultura liberal moderna que, quando os
movimentos ocidentais da New Age descobriram ensinamentos budistas,
eles os traduziram em termos liberais e, assim, os distorceram. Com
frequência, os cultos da New Age afirmam: “A felicidade não
depende de condições externas. Só depende do que sentimos dentro
de nós. As pessoas devem parar de almejar conquistas externas como
riqueza e status e, em vez disso, se conectar com suas sensações
internas”. Ou, de maneira mais sucinta, “a felicidade começa
dentro de você”. Isso é exatamente o que os biólogos afirmam,
mas praticamente o oposto do que Buda disse.
Buda
concordava com a biologia moderna e com os movimentos da New Age ao
afirmar que a felicidade independe de condições externas. Mas sua
compreensão mais importante e mais profunda foi que a verdadeira
felicidade também independe de nossas sensações interiores. Com
efeito, quanto mais importância damos a nossas sensações, mais
ansiamos por elas, e mais sofremos. A recomendação de Buda era
parar a busca não só de conquistas externas, como também, acima de
tudo, a busca de sensações internas.
Para
resumir, os questionários de bem-estar subjetivo identificam nosso
bem-estar com nossas sensações subjetivas, e a busca de felicidade
com a busca de certos estados emocionais. Por outro lado, para muitas
filosofias e religiões tradicionais, como o budismo, o segredo da
felicidade é conhecer a verdade sobre você mesmo – entender quem,
ou o que, você é realmente. A maioria das pessoas se identifica, de
maneira errônea, com suas sensações, pensamentos, gostos e
desgostos. Quando sentem raiva, pensam: “Eu estou com raiva. Esta é
minha raiva”. Em consequência, passam a vida evitando certos tipos
de sensação e almejando outros. Elas nunca percebem que não são
suas sensações e que a busca incessante por determinadas sensações
só as aprisiona ao sofrimento.
Se
é assim, toda a nossa compreensão da história da felicidade pode
estar equivocada. Talvez não seja tão importante saber se as
expectativas das pessoas são satisfeitas e se elas têm sensações
agradáveis. A principal questão é se as pessoas conhecem seu
verdadeiro eu. Que evidências nós temos de que as pessoas de hoje
se conhecem melhor essa verdade do que os antigos caçadores-coletores
ou os camponeses medievais?
Os
acadêmicos começaram a estudar a história da felicidade há apenas
alguns anos, e ainda estamos formulando as hipóteses iniciais e
procurando os métodos de pesquisa adequados. É cedo demais para
adotar conclusões rígidas e encerrar um debate que mal começou. O
que é importante é conhecer tantas abordagens quanto possível e
fazer as perguntas certas.
A
maioria dos livros de história se concentra nas ideias dos grandes
pensadores, na ousadia dos guerreiros, na caridade dos santos e na
criatividade dos artistas. Eles têm muito a dizer sobre a construção
e a destruição de estruturas sociais, sobre a ascensão e queda de
impérios, sobre a descoberta e disseminação de tecnologias. Mas
não dizem nada sobre como tudo isso influenciou a felicidade e o
sofrimento dos indivíduos. Essa é a maior lacuna em nossa
compreensão da história. É melhor começarmos a preenchê-la.
Yuval
Noah Harari,
in Sapiens
– uma breve história da humanidade
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