Sonho
que Elias Canetti me convida para jantar. Recebe-me na cozinha, ele
mesmo prepara a massa. Enquanto trabalha no molho, abrimos uma
garrafa de vinho e conversamos. “Falo para seguir o método de
Confúcio”, me diz. “Falar é uma maneira de desenhar nosso
retrato espiritual.”
Digo
que é uma pena que suas ideias se percam entre os vapores do
carbonara. Ainda posso sentir o cheiro forte do toucinho. Canetti me
encara. “Você tem razão. Devia ser possível dizer tudo em poucas
palavras.” Suspira e continua: “Enquanto não se pode fazer isso,
não há realmente o que dizer”. E, com o rosto borrado de fumaça,
silencia.
Acordo.
Encontro em minha cabeceira um exemplar de Sobre os escritores
(José Olympio, tradução de Ivo Barroso), reunião de anotações e
aforismos inéditos de Canetti, organizada por Penka Angelova e Perer
von Matt. Eu o lia antes de dormir. Corro às notas dedicadas a
Confúcio e a Heráclito; lá estão as frases que meu sonho,
confusamente, repetiu.
Não
é a primeira vez que sonho com frases. Semanas atrás, com a cabeça
coberta por um turbante negro, Simone de Beauvoir me dizia em um
pesadelo: “Não podemos jamais nos conhecer, só podemos nos
narrar”. A frase me despedaça. Literalmente: pedaços de meu rosto
– uma orelha, uma sobrancelha, a ponta do nariz – rolam para o
chão. Acordo em pânico. É atordoante a ideia de que estamos
condenados ao desconhecimento. Tudo o que nos resta, diz Simone, é
inventar.
Mais
calmo, folheio o livro de Canetti e esbarro em uma anotação
dedicada a Chuang Tse, o discípulo de Lao Tse. Diz Chuang que os
ventos são a maneira que o cosmos encontra para respirar. A vida é
respiração. Penso nos vapores que nos envolviam em meu sonho: são
a respiração da cozinha. Também nas anotações de Canetti, as
ideias sopram.
Acredita
Canetti que os pensamentos se parecem com as tempestades. Sopram e
atordoam. Alguns filósofos nos dispersam: Aristóteles. Outros nos
oprimem: Hegel. De alguns nos gabamos: Nietzsche. Outros nos fazem
respirar – e aqui voltamos a Chuang Tse.
Escrevendo
sobre Confúcio, Elias Canetti observa a força do impalpável –
como a que se esconde nos tremores, nos suspiros e nas ventanias. O
impalpável nos preenche. Compara: “Como se as lacunas nada mais
fossem que as conhecidas dobras de trajes”. As palavras são uma
prova definitiva disso. Nada mais impalpável que a palavra. E, no
entanto, sem ela não existimos.
Também
Canetti escreve como quem respira. Suas anotações nos sacodem e nos
vergam. Não se pega o vento: ele não se deixa aprisionar. Canetti
escreve como um poeta, com arroubos e fervor. Através de sopros –
como um deus criador. Em plena desordem, sem nenhuma esperança de
coerência. Ele mesmo diz: “Sem a desordem da leitura não existe o
poeta”.
Severo,
porém, esclarece: “Eu não sou poeta, pois não sei calar”. Seu
livro desmente essa afirmação. Ele mesmo, logo depois, se corrige:
“Mas muitas pessoas dentro de mim – que eu não conheço –
calam. Suas irrupções eventuais me tornam poeta”.
Gosto
da ideia de que o poeta é – para roubar uma expressão de Antonio
Tabuchi a respeito de Fernando Pessoa – “uma valise cheia de
gente”. No meio da noite, muitas vezes, e mesmo sem ser poeta,
também acordo com esse falatório interior. Frases se movem dentro
de mim. Durante o dia, silenciosas, elas serpenteiam. À noite, de
repente gritam.
Lembra
Canetti que somos filhos da tradição da ordem. No romance,
exemplifica, a ordem começa com Flaubert. “Ali não existe nada
que não tenha sido peneirado.” Ela atinge sua perfeição em
Kafka. Mas é tudo muito precário. Canetti percebe em Kafka, o
metódico, o sopro desordenado de Dostoiévski, o louco. É a
respiração ofegante do escritor russo que sustenta a ordem
kafkiana. É a desordem que, submersa, alimenta a ordem.
Prefere
Canetti, por isso, os “poetas desordenados”. Que podem dormir
dentro de grandes narradores, como Charles Dickens. Não esconde,
porém, a contradição de que se alimenta: não existe escritor que
ele ame mais que o duro Stendhal. Aprecia, em particular, sua
ingenuidade: “Ele não se envergonha de nenhum dos sentimentos”.
Em Stendhal, tudo está exposto.
Volto
ao sonho da cozinha. Com delicadeza, Canetti manipula a pancetta
picada, o creme de leite, a pimenta. Como Flaubert, ele aposta na
dosagem dos temperos – que não passam, aliás, de brisas com que
refrescamos os alimentos. “Temperos sopram a comida”, ele me diz
no sonho.
É
o que admira em Stendhal: a capacidade de suspirar. “Jamais abri
alguma página sua sem me sentir leve e iluminado.” E completa,
para que não o tomem pelo discípulo metódico que não é: “Ele
nunca foi a minha lei. Mas foi a minha liberdade”.
Quando
fala de sua predileção pelo silêncio, Canetti faz uma defesa da
pausa e do recolhimento. Um escritor deve saber esperar. Como o
cozinheiro que, paciente, aguarda que as cebolas dourem, também o
escritor deve se conservar em compasso de espera, até que as
palavras estalem.
Nas
horas de silêncio, Canetti tomava notas – que agora tenho o
privilégio de ler. Não para dizer, mas para que algo se dissesse.
Na escrita, ele argumenta, o escritor é o último a saber o que diz.
O próprio crítico (eu?) deve privilegiar a ignorância. Anota: “O
crítico como ponte mnemônica, todos o entendem, mas ele não
entende nada”. Não é fácil aceitar que o principal sempre
escapa.
Com
suas notas, Elias Canetti faz crítica literária. Mas criticar não
é derreter um livro na gosma das leituras prévias, das teorias, das
ideias prontas. “Há os que se entregam à língua para
dissolvê-la”, Canetti diz. “E outros que estremecem ao tocá-la.”
Não para mistificar as palavras ou tomá-las como sagradas. Mas para
aceitá-las.
Tampouco
para delas fazer um glacê, pois a língua deve sempre preservar a
aparência dos assados sangrentos. Diz Canetti: “Ah, como tenho
nojo das palavras intencionalmente enigmáticas!”.
Canetti
aposta no poder fundador da palavra. A palavra não é um espelho, um
bisturi, um objeto de decoração. Ela é – e isso deveria bastar.
Afirma: “O que um poeta não vê não aconteceu”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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