terça-feira, 6 de março de 2018

A profecia de Frankenstein

Em 1818, Mary Shelley publicou Frankenstein, a história de um cientista que tenta criar um ser superior e, em vez disso, cria um monstro. Nos últimos dois séculos, essa história foi contada repetidas vezes em inúmeras variações, tornando-se o tema central de nossa nova mitologia científica. À primeira vista, a história de Frankenstein parece nos advertir de que, se tentarmos brincar de Deus e criar vida, seremos punidos severamente. Mas a história tem um significado mais profundo.
O mito do Frankenstein confronta o Homo sapiens com o fato de que os últimos dias estão se aproximando depressa. A não ser que alguma catástrofe nuclear ou ecológica intervenha, diz a história, o ritmo do desenvolvimento tecnológico logo levará à substituição do Homo sapiens por seres completamente diferentes que têm não só uma psique diferente como também mundos cognitivos e emocionais muito diferentes. Isso é algo que a maioria dos sapiens considera extremamente desconcertante. Gostamos de acreditar que, no futuro, pessoas exatamente como nós viajarão de planeta em planeta em espaçonaves velozes. Não gostamos de considerar a possibilidade de que, no futuro, seres com emoções e identidades como as nossas já não existam e que nosso lugar seja tomado por formas de vida estranhas cujas capacidades ofuscam as nossas.
De algum modo, encontramos conforto na fantasia de que o dr. Frankenstein pode criar apenas monstros terríveis, a quem deveríamos destruir a fim de salvar o mundo. Gostamos de contar a história dessa maneira porque implica que somos os melhores de todos os seres, que nunca houve e nunca haverá algo melhor do que nós. Qualquer tentativa de nos melhorar inevitavelmente fracassará, porque, mesmo que nosso corpo possa ser aprimorado, não se pode tocar o espírito humano.
Teríamos dificuldade de engolir o fato de que os cientistas poderiam criar não só corpos como também espíritos e de que os drs. Frankenstein do futuro poderiam, portanto, criar algo verdadeiramente superior a nós, algo que olhará para nós de modo tão condescendente quanto olhamos para os neandertais. Não podemos saber ao certo se os Frankensteins de hoje realizarão essa profecia. O futuro é desconhecido, e seria surpreendente se todas as previsões das últimas páginas se concretizassem. A história nos ensina que o que parece estar depois da esquina pode jamais se materializar devido a barreiras imprevistas e que outros cenários não imaginados acontecerão de fato. Quando irrompeu a era nuclear nos anos 1940, fizeram-se muitas previsões sobre o futuro mundo nuclear do ano 2000. Quando o Sputnik e a Apollo 11 atiçaram a imaginação do mundo, todos começaram a prever que no fim do século as pessoas estariam vivendo em colônias espaciais em Marte e Plutão. Poucas delas se tornaram realidade. Por outro lado, ninguém previu a internet.
Portanto, não saia por aí comprando seguros de responsabilidade civil para indenizá-lo contra processos iniciados por seres digitais. As fantasias – ou pesadelos – acima mencionados são apenas estímulos à sua imaginação. O que devemos levar a sério é a ideia de que a próxima etapa da história incluirá não só transformações tecnológicas e organizacionais como também transformações sociais na consciência e na identidade humana. E essas podem ser transformações tão fundamentais que colocarão em dúvida o próprio termo “humano”. Quanto tempo temos? Ninguém sabe ao certo. Como já dissemos, alguns dizem que em 2050 alguns humanos já serão amortais. Previsões menos radicais falam do próximo século, ou do próximo milênio. Mas, da perspectiva de 70 mil anos de história do sapiens, o que são alguns milênios?
Se a história do sapiens está mesmo chegando ao fim, nós, membros de uma de suas últimas gerações, devemos dedicar algum tempo a responder a uma última pergunta: o que queremos nos tornar? Essa pergunta, às vezes conhecida como a pergunta do Aperfeiçoamento Humano, obscurece o debate que atualmente preocupa políticos, filósofos, acadêmicos e pessoas comuns. Afinal, o debate atual entre as religiões, ideologias, nações e classes de hoje muito provavelmente desaparecerá junto com o Homo sapiens. Se nossos sucessores funcionarem realmente em um nível diferente de consciência (ou, talvez, tiverem algo além da consciência que sequer somos capazes de conceber), parece improvável que o cristianismo ou o islamismo os interesse, que sua organização social seja comunista ou socialista ou que seus gêneros possam ser masculino ou feminino.
E, ainda assim, os grandes debates da história são importantes porque pelo menos a primeira geração desses deuses seria determinada pelas ideias culturais de seus criadores humanos. Eles seriam criados à imagem do capitalismo, do islamismo ou do feminismo? A resposta a essa pergunta poderia empurrá-los em direções completamente diferentes.
A maioria das pessoas prefere não falar sobre isso. Mesmo o campo da bioética prefere abordar outra pergunta: “O que é proibido fazer?”. É aceitável fazer experimentos genéticos com seres humanos vivos? Com fetos abortados? Com células-tronco? É ético clonar ovelhas? E chimpanzés? E quanto a humanos? Todas essas são perguntas importantes, mas é ingênuo imaginar que podemos simplesmente frear os projetos científicos que estão transformando o Homo sapiens em um tipo diferente de ser, pois esses projetos estão inextricavelmente unidos à busca pela imortalidade – o Projeto Gilgamesh. Pergunte aos cientistas por que eles estudam o genoma, ou tentam conectar um cérebro a um computador, ou tentam criar uma mente dentro de um computador. Nove em cada dez lhe darão a mesma resposta: estamos fazendo isso para curar doenças e salvar vidas humanas. Embora as implicações de criar uma mente dentro de um computador sejam muito mais dramáticas do que curar doenças psiquiátricas, essa é a justificativa padrão fornecida, porque ninguém pode argumentar contra ela. É por isso que o Projeto Gilgamesh é o mais importante da ciência. Serve para justificar tudo que a ciência faz. O dr. Frankenstein pega carona nos ombros de Gilgamesh. Uma vez que é impossível deter Gilgamesh, também é impossível deter o dr. Frankenstein.
A única coisa que podemos tentar fazer é influenciar a direção que eles estão tomando. Mas, considerando que possivelmente logo seremos capazes de manipular inclusive nossos desejos, a verdadeira pergunta a ser enfrentada não é “O que queremos nos tornar?”, e sim “O que queremos querer?”. Aqueles que não se sentem assombrados por essa pergunta provavelmente não refletiram o suficiente a respeito.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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