segunda-feira, 5 de março de 2018

A primeira pessoa

No começo era eu. Só eu. Eu, eu, eu, eu, eu, eu. Não existia nem a segunda pessoa do singular, porque eu não podia chamar Deus de “tu”. Tinha que chamá-lo de “Senhor”. Não existia “ele”. Não existia “nós”. Nem “vós”. Nem “eles”. Só existia eu. Eu, eu, eu, eu. Não é que eu fosse um egocêntrico. É que não havia alternativa!

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Eu não podia pensar nos outros porque não havia outros. O mundo era uma gramática em branco. Só havia eu e todos os verbos eram na primeira pessoa. Eu abri os olhos. Eu olhei em volta. Eu vi que estava num Paraíso (do grego paradeisos, um jardim de prazeres, ou do persa paridaiza, o parque de um nobre, mas isso só se soube depois). Eu perguntei “O que devo fazer, Senhor?”, e Deus respondeu “Nada, apenas exista”. E eu fui tomado pelo tédio. A primeira sensação humana.

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E Deus viu que eu me entediava, pois do que vale ser um nobre no seu parque se não existem os outros para nos invejar? E então Deus, que já tinha criado o tempo, criou o passatempo, e me encarregou de dar nome às coisas. Eu vi a uva, e a chamei de parmatursa. Eu vi a pedra e a chamei de cremílsica, e ao pavão chamei de gongromardélio, e ao rio chamei de... Mas Deus me mandou parar e disse que cuidaria daquilo, e me instruiu a procurar o que fazer enquanto terminava de criar o Universo, pois os anéis de Saturno ainda estavam lhe dando trabalho. E eu me rebelei e perguntei “Fazer o quê?”, e viu Deus que, além do Homem, tinha criado um problema.

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E perguntou Deus o que eu queria, e eu respondi: “Sabe que eu não sei?” E Deus disse que tinha me dado uma vida sem fim, e um jardim de prazeres digno de um nobre persa para viver minha vida sem fim, e frutas e peixes e pássaros de graça e dentes para comê-los, e mel de sobremesa, e que eu esperasse para ver que espetáculo, que show, seria o Universo quando ficasse pronto. Tudo para mim. Só para mim. E não bastava? Não bastava. “Eu pedi para nascer, pedi?”, disse eu. E Deus suspirou, criando o vento. E pensou: “Filho único é fogo.”

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Pois do que valem os prazeres do Paraíso sem alguém para compartilhá-lo, e o espetáculo do Universo sem alguém com quem comentá-lo? O que eu queria? Queria outra pessoa. Era isso. Queria a segunda pessoa. Um irmão, alguém para chamar de “tu”. Alguém com quem chamar o Senhor de “ele”. Ou “Ele”. E que quando Ele chamasse de vós, respondêssemos em uníssono “nós?”. E quando se referisse a nós para os anjos, dissesse “eles”. Criando outra pessoa, Deus estaria, para todos os efeitos gramaticais, criando cinco.

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E Deus fez a minha vontade, e me pôs a dormir, e quando acordei tinha um irmão ao meu lado, tirado do meu lado. Igual a mim em todos os aspectos. Espera aí, em todos, não. Deus, com a cabeça em Saturno, não prestara atenção no que fazia e errara a cópia. Colocara coisas que eu não tinha e esquecera coisas que eu tinha, como o pênis, que se dependesse de mim se chamaria Obozodão. Deus se ofereceu para recolher a cópia defeituosa e fazer uma certa mas eu disse “Na-na-não, pode deixar”. Pois tinha visto que era bom. Ou boa. E fui tomado de amor pelo outro. A segunda sensação humana.

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Ela era o meu tu, eu era o tu dela. Juntos, inauguramos vários verbos que estão em uso até hoje. E eu a chamei de Altimanara, mas Deus vetou e lhe deu outro nome. E quando ela perguntou como era o meu nome, respondi “Mastortônio”, mas Deus limpou a garganta, inventando o trovão, e disse que não era, não. Ficou Adão e Eva (eu Adão, ela Eva) aos olhos do Senhor e na história oficial, mas em segredo, isto pouca gente sabe, nos chamávamos de Titinha e Totonho. E foi ela que disse “Totonho, quero que tu me conheças mais a fundo”. E eu: “No sentido bíblico?” E ela: “Existe outro?” E inauguramos outro verbo.

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E foi ela que me ofereceu o fruto da Árvore do Saber, a que Deus tinha me dito para nunca tocar, mas colocado bem no meio do Paraíso, vá entender. Resisti, embora a fruta fosse rubicunda (uma das poucas palavras que consegui inventar, driblando a fiscalização do Senhor) e ela a segurasse contra o peito, como um terceiro e apetitoso seio. Se comêssemos daquela fruta perderíamos a inocência e nos tornaríamos mortais. “Em compensação...”, disse a Titinha. Em compensação, o quê? Só saberíamos se comêssemos a fruta. E fomos tomados de curiosidade. A terceira sensação humana. A fatal.

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Quando soube da nossa transgressão, Deus deu um murro na Terra, criando o terremoto, e nos expulsou do nosso jardim persa. E durante todos esses anos, muitas pessoas têm me perguntado (pois depois disso a Terra se encheu de muitas pessoas) se valeu a pena trocar meus privilégios de primeira e única pessoa pelo prazer de conjugar com outra, e o meu tédio pelas sensações de envelhecimento e a morte, e a inocência eterna pelo saber fugaz. E sabe que eu não sei?

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E, claro, sempre tem o gaiato que pergunta: “Fora tudo isso, que tal era a fruta?”
Luís Fernando Veríssimo, in Amor Veríssimo

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