Não
é incomum apaixonar-se pela mulher de um amigo. Acontece de várias
maneiras. O longo convívio com o amigo e a mulher pode ser tão
íntimo e agradável que só muito tarde você se dá conta de que o
que estava havendo entre você e a mulher do amigo, o tempo todo, era
um namoro, que evoluiu para o amor. Ou você pode simplesmente
acordar no meio da noite, depois de um sonho revelador, e dizer com
espanto: “Eu amo a mulher do Nogueira!” Pode acontecer num
acidente, num detalhe do cotidiano, um roçar de dedos ou um cruzar
de olhares que detona a paixão incontrolável. Mas o nosso Jorge
encontrou um jeito original, decididamente incomum, de se apaixonar
pela mulher de um amigo. Apaixonou-se pela mulher do Nogueira
(digamos que seu nome seja Nogueira) quando foi visitá-la na
maternidade, depois que ela teve o primeiro filho com o Nogueira. A
mulher do Nogueira estava amamentando a criança quando o Jorge
entrou no quarto. O Jorge apaixonou-se pelo conjunto. Perdidamente.
Até hoje, ele não pode contar sem se emocionar.
*
* *
O
Jorge não sabe explicar o que houve. Antes, mal prestara atenção
na mulher do Nogueira. Ela era bonita, mas de um jeito artificial, um
jeito de boneca. Sempre bem penteada e bem maquiada, costumava sentar
na ponta das cadeiras com as pernas coladas e um pé ligeiramente
perpendicular ao outro, como se fosse uma característica superior da
sua tribo. O Jorge só descobrira que ela estava no último estágio
da gravidez quando notou um dia, por acaso, que a barriga avantajada
a obrigava a sentar-se com as pernas um pouco abertas, mas sem perder
a linha. Ela falava pouco e certa vez, quando a discussão no grupo
era sobre política internacional, divertira a todos dizendo que não
tinha nada contra o Bush, “mas ele lá e eu aqui”. O Jorge
conhecia o Nogueira desde a adolescência e não entendia o que o
amigo tinha visto naquela boneca decorativa e fútil. Mas, enfim, não
era problema dele. E então entrara no quarto da maternidade e vira a
Juliana (digamos que seu nome seja Juliana) amamentando seu
recém-nascido.
*
* *
A
Juliana sem maquiagem, com o cabelo em desalinho, com aquela calidez
meio úmida e resplandecente que, segundo o Jorge, as mulheres
adquirem depois do parto, sorrindo para o bebê que sugava o seu
peito com uma calma e uma sabedoria tão antigas que o Jorge quase
deixou cair as flores e levou as mãos ao coração, como no cinema
mudo. “Sardas!”, nos disse o Jorge, extasiado. “Ela tem
sardas!” As sardas no rosto limpo da Juliana tinham completado o
sortilégio da cena, para o Jorge. Nos três dias que Juliana ficou
no hospital, Jorge foi visitá-la todas as tardes, e ficava até ser
expulso pelas enfermeiras. Para surpresa da Juliana, que também
nunca prestara muita atenção naquele amigo meio esquisito do
Nogueira e não entendia aquela súbita devoção.
*
* *
O
problema, para o Jorge, passou a ser o que fazer com sua paixão. Não
podia declará-la a Juliana. Muito menos confessá-la ao Nogueira. E,
mesmo, poucas semanas depois do parto Juliana voltara a ser o que
era, com as sardas escondidas por camadas de maquiagem e um pé
ligeiramente perpendicular ao outro. A mesma boneca, só com seios
maiores. Jorge perguntava muito pelo bebê, mas, fora isso, não
tinha muito assunto com a mulher decorativa e fútil do Nogueira. Ao
contrário das tardes no hospital, quando lhe contara a sua vida,
quando assunto era o que não faltava. Aos poucos, a paixão do Jorge
amainara. Até que um dia...
*
* *
Um
dia, num dos almoços da turma, ouviu o Nogueira anunciar:
— A
Juliana está grávida de novo.
O
coração do nosso Jorge deu um pulo, depois só ficou ronronando de
prazer dentro do seu peito como um gato contente. A Juliana teria
outro bebê. A sua amada estaria de volta!
*
* *
O
Nogueira e a Juliana já estão com quatro filhos. (O terceiro é até
afilhado do Jorge.) A cada novo parto o amor de Jorge por Juliana
aumentou. E ninguém entendeu — só nós, que sabíamos da sua
insólita paixão — o “Não!” que Jorge deixou escapar quando,
no outro dia, Juliana disse que chegava, que não pretendia ter mais
filhos. E por que Jorge em seguida passou a pontificar, indignado,
sobre o absurdo preconceito dos casais modernos contra famílias
grandes como as de antigamente. Oito, doze, dezessete filhos, por que
não? Ele era contra o controle de natalidade por meios artificiais.
Neste ponto, estava com o papa.
Luís
Fernando Veríssimo, in Amor veríssimo
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