terça-feira, 27 de março de 2018

A mesa da cabine

É meio-dia, e Dough-boy, o camareiro, colocando seu rosto branco como um filão de pão para fora do escotilhão da cabine, anuncia o almoço a seu amo e senhor, que, sentado num bote a sotavento, acaba de observar o sol; e agora calcula a latitude em silêncio, na tabuleta lisa em forma de medalhão, reservada para este fim, sobre a parte superior de sua perna de marfim. De sua total falta de atenção ao aviso, você poderia depreender que o soturno Ahab não escutara seu subalterno. Mas, apoiando-se nos brandais da mezena, lança-se para o convés e, anunciando com uma voz indiferente, “O almoço, senhor Starbuck”, desaparece na cabine.
Quando se cala o último eco dos passos de seu sultão, e Starbuck, o primeiro Emir, tem todos os motivos para supor que ele já esteja sentado, então este sai de sua tranquilidade, dá umas voltas pelo convés e, depois de olhar para dentro da bitácula, anuncia com uma voz brincalhona, “O almoço, senhor Stubb”, e desce em direção à cabine. O segundo Emir se espreguiça perto do cordame, e assim, sacudindo de leve um dos cabos para ver se tudo corre bem por ali, também assume o velho fardo, e, com um breve “O almoço, senhor Flask”, segue seus predecessores.
Mas o terceiro Emir, vendo-se sozinho no tombadilho, sente-se como que liberto de alguma restrição curiosa; depois de lançar todos os tipos de olhares para todas as direções, e chutando para o alto os sapatos, entrega-se a uma selvagem mas silenciosa dança de convés, o hornpipe, bem em cima da cabeça do Grão-turco; depois, jogando seu boné no cesto da mezena com um gesto hábil, desce divertindo-se, pelo menos enquanto permanece visível ao convés, na contramão das demais procissões, por ter música na retaguarda. Mas antes de entrar pela porta da cabine abaixo ele pára, põe a bordo uma nova expressão, e então, independente e pequenino, o cômico Flask se apresenta diante do Rei Ahab interpretando Abjectus, ou o Escravo.
Não é a menos estranha entre as situações geradas pela extrema artificialidade dos costumes do mar que, enquanto no ar livre do convés, alguns oficiais, sob provocação, se comportem de modo atrevido e desafiador para com seu comandante; mas, numa proporção de dez para um, veja como esses mesmos oficiais descem no instante seguinte para suas refeições costumeiras naquela mesma cabine do capitão e, com um ar verdadeiramente inofensivo, para não dizer depreciativo e humilde, se dirigem àquele sentado à cabeceira; isso é incrível, às vezes muito engraçado. Por que essa diferença? Um problema? Talvez não. Ter sido Baltasar, Rei da Babilônia, e tê-lo sido não com arrogância, mas com cortesia, nisso há certamente um toque de grandeza mundana. Mas aquele que com espírito nobre e inteligente preside sua mesa de jantar particular com convidados – o jamais desafiado poder e domínio da influência individual desse homem sobre os tempos, bem como sua dignidade real, superam Baltasar, pois Baltasar não foi o maior. Quem ofereceu um jantar aos amigos uma só vez já provou o que é ser César. É um feitiço do czarismo social que não encontra resistência. Ora, se a essa consideração você somar a supremacia oficial de um comandante de navio, então, por inferência, estará entendida a causa da singularidade da vida no mar que acabo de mencionar.
À mesa de marfim marchetado, Ahab presidia como um silencioso e jubado leão-marinho na praia branca e coralina, cercado por filhotes guerreiros, porém respeitosos. A seu tempo, cada oficial esperava ser servido. Eram como criancinhas diante de Ahab; e em Ahab não havia o menor vestígio de arrogância. Com um só pensamento, seus olhos atentos se fixavam na faca do velho, enquanto este cortava o prato principal à sua frente. Não creio que por nada neste mundo eles teriam profanado aquele momento com qualquer observação, nem mesmo com um assunto tão banal quanto o tempo. Nunca! E quando, estendendo a faca e o garfo que prendiam um pedaço de carne, Ahab trazia para si o prato de Starbuck, o oficial recebia a carne como se estivesse recebendo uma esmola; e cortava-a com delicadeza; e ficava sobressaltado se por acaso a faca roçasse o prato; e mastigava sem fazer ruído; e engolia, não sem circunspeção. Pois, como no banquete de coroação em Frankfurt, quando o Imperador Alemão almoça com os sete Eleitores Imperiais, as refeições na cabine eram refeições solenes, feitas em um terrível silêncio; não que o velho Ahab proibisse a conversa; apenas se mantinha calado. Que alívio sentia Stubb, sufocado, quando um rato fazia um movimento no porão embaixo. E o pobre e pequenino Flask, ele era o filho mais novo, o caçula desse aborrecido grupo familiar. Seus eram os ossos da carne de vaca salgada, dele teriam sido os pés da galinha. Para Flask, tomar a liberdade de se servir equivaleria a um flagrante de furto. Tivesse se servido à mesa, nunca mais poderia andar de cabeça erguida neste mundo honrado; no entanto, por estranho que pareça, Ahab jamais explicitara tal proibição. E, se Flask se servisse, é possível que Ahab nem se desse conta. Por fim, Flask aventou a possibilidade de se servir da manteiga. Se foi porque pensou que os donos do navio não permitiam, visando a conservar sua pele clara e luminosa; ou se porque julgou que numa viagem tão longa, em águas tão distantes de mercados, a manteiga era um prêmio, e portanto um subalterno como ele não a merecia; seja lá o que fosse, Flask, ai! – era um homem desamanteigado.
Outra coisa. Flask era o último a descer para o almoço, e Flask era o primeiro a subir. Imagine! Não era à toa que o almoço de Flask era mal servido de tempo. Starbuck e Stubb vinham à sua frente; e também tinham o privilégio de acabar depois. Mesmo que Stubb, que estava apenas um pouco acima de Flask, manifestasse pouco apetite e desse sinal de estar terminando a refeição, então Flask teria que correr, não conseguiria mais do que três bocados nesse dia; pois era contra o costume sagrado que Stubb precedesse Flask no convés. Foi por isso que Flask admitiu certa vez em particular que, desde que ele tinha ascendido à condição de oficial, nunca mais soube o que era sentir outra coisa além de um pouco de fome. Pois tudo o que comia não lhe matava a fome, como se a mantivesse imortal dentro de si. A paz e a satisfação, pensava Flask, desertaram para sempre do meu estômago. Sou um oficial; mas como desejaria agarrar um pedaço de carne velha no castelo de proa, como fazia quando era um simples marinheiro. São os frutos de ser promovido; é a vaidade da glória; é a insensatez da vida! Além disso, se algum simples marinheiro do Pequod tivesse algum rancor contra Flask em sua condição de oficial, tudo o que esse marinheiro precisava fazer, para uma vingança completa, era ir à popa na hora da refeição e observar Flask pela clarabóia da cabine, sentado em silêncio, como um tolo, diante do terrível Ahab.
Ora, Ahab e seus três oficiais formavam o que se pode chamar de a primeira mesa da cabine do Pequod. Depois de sua saída, que ocorria na ordem inversa de sua chegada, a toalha de lona era retirada, ou melhor, retornava a uma certa ordem apressada por obra do pálido camareiro de bordo. E então os três arpoadores eram convidados a se refestelar, como legatários dos restos. Transformavam a cabine eminente e poderosa num tipo de refeitório temporário dos empregados.
Num estranho contraste com o quase intolerável constrangimento e dominação invisível e inominável da mesa do capitão, reinava um bem-estar e uma liberdade despreocupada, uma democracia quase frenética, entre esses sujeitos inferiores, os arpoadores. Enquanto seus chefes, os oficiais, pareciam ter medo do ruído das articulações de seus próprios maxilares, os arpoadores mastigavam os alimentos com tamanha satisfação que se podia escutá-la. Alimentavam-se como lordes; enchiam suas barrigas como os navios indianos se enchem de especiarias. O apetite de Queequeg e Tashtego era tão prodigioso que, para preencher a lacuna da refeição precedente, muitas vezes o pálido Dough-boy tinha que trazer uma grande posta de carne salgada, que parecia estirpada do boi vivo. E se não fosse lépido, se não fosse num pé e voltasse no outro, Tashtego tinha um modo grosseiro de fazê-lo se apressar, atirando em suas costas um garfo como se atirasse um arpão. E, certa vez, Daggoo, num ataque de gracejo, refrescou a memória de Dough-boy erguendo-o no ar e colocando sua cabeça numa tábua de cortar carne vazia, enquanto Tashtego, faca na mão, fazia os círculos preliminares para escalpelá-lo. Era um sujeito naturalmente muito nervoso e trêmulo, esse camareiro com cara de pão; descendente de um padeiro falido e de uma enfermeira de hospital. E com o espetáculo permanente do terrível e sombrio Ahab, e as periódicas visitas tumultuadas desses três selvagens, a vida de Dough-boy era um contínuo tremor de lábios. Em geral, depois de servir aos arpoadores tudo o que lhe pediam, ele fugia de suas garras para a pequena despensa adjacente e ficava olhando através do buraco da porta, até que tudo houvesse terminado.
Era um espetáculo ver Queequeg sentado de frente para Tashtego, opondo seus dentes afilados aos do índio: Daggoo sentava-se no chão, na transversal, porque, se usasse um banco, sua cabeça, suporte de plumas, teria encostado às carlinas mais baixas; a cada movimento de seus membros colossais a estrutura da cabine estremecia, como quando um elefante africano é transportado num navio. E com tudo isso esse negro enorme ainda era extremamente moderado, para não dizer delicado. Não parecia possível que com tão pouca comida ele pudesse manter a vitalidade que se difundia por seu corpo tão amplo, imponente, varonil. Mas, sem dúvida, esse nobre selvagem comia muito e bebia profundamente do abundante elemento aéreo; e por suas narinas dilatadas inalava a sublime vida dos mundos. Não é com carne de vaca ou com pão que os gigantes se alimentam. Mas Queequeg, esse tinha uma maneira bárbara de fazer ruído com os lábios enquanto comia – um ruído tão horrível que o estremecido Dough-boy olhava para seus próprios braços delgados para ver se tinham marcas de dentes. E quando ouvia Tashtego chamá-lo para que aparecesse, que queria morder seus ossos, o ingênuo Camareiro tremia tanto que quase quebrava a louça dependurada na despensa. Nem as pedras que os arpoadores carregavam nos bolsos, para amolar lanças e outras armas; e com as quais, durante a refeição, afiavam ostensivamente as facas; nem o ruído irritante das pedras serviam para acalmar o pobre Dough-boy. Como poderia esquecer que em seus tempos de Ilha, Queequeg, por exemplo, devia ter sido culpado por alguma imprudência festiva e assassina. Pobre Dough-boy! Dura é a vida de um copeiro branco que tem de servir canibais. Não deveria trazer um guardanapo no braço, mas um escudo. Contudo, em boa hora, para sua grande alegria, os três guerreiros de águas salgadas se levantariam e sairiam; e, às suas orelhas crédulas e imaginativas, os ossos marciais tiniam a cada passo, como cimitarras mouriscas nas bainhas.
Não obstante, embora esses bárbaros almoçassem na cabine e nominalmente lá vivessem; ainda assim, sendo seus hábitos pouco sedentários, raramente iam para lá, exceto em horas de refeição, e um pouco antes de dormir, quando passavam por ali para chegar a seus aposentos particulares.
Neste único ponto Ahab não era diferente dos outros capitães baleeiros norte-americanos, que, em conjunto, tendem a achar que a cabine do navio lhes pertence por direito; e que apenas por cortesia a entrada de uma pessoa nesse lugar é permitida. Por isso, na verdade, os oficiais e os arpoadores do Pequod viviam muito mais tempo fora do que dentro da cabine. Porque, quando entravam, era como uma porta da rua em uma casa; viravam-se para dentro por uns instantes, apenas para voltar para fora em seguida; vivendo permanentemente ao ar livre. Também não perdiam muito com isso; na cabine não havia companhia; socialmente, Ahab era inacessível. Embora estivesse nominalmente incluído no censo da Cristandade, mantinha-se alheio a ele. Vivia no mundo, como vivem os últimos ursos pardos do Missouri. Quando a primavera e o verão terminavam, aquele Logan selvagem das florestas, enterrando-se no tronco de uma árvore oca, ali passava o inverno, lambendo as próprias patas; do mesmo modo, em sua velhice inclemente e tempestuosa, a alma de Ahab se ocultava no tronco cavoucado de seu corpo, e ali se alimentava das patas taciturnas de sua melancolia!
Herman Melville, in Moby Dick

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