domingo, 25 de março de 2018

A existência de Deus

Para abordar a questão da existência de Deus, que é uma questão ampla e séria, pedirei licença para tratar dela de maneira um tanto resumida – se eu fosse tentar abordá-la de qualquer maneira adequada, precisaria mantê-los aqui até o Final dos Tempos. Os senhores sabem, é claro, que a Igreja Católica definiu como dogma o fato de a existência de Deus poder ser provada pela razão espontânea. Esse é um dogma um tanto curioso, mas é um dos dogmas deles. Precisaram introduzi-lo porque, a certa altura, os livres-pensadores adotaram o hábito de dizer que existiam tais e tais argumentos por meio dos quais a pura e simples razão poderia concluir que Deus não existe, mas é claro que eles sabiam, por questão de fé, que Deus existe. Esses argumentos e razões foram expostos muito longamente, e a Igreja Católica sentiu a necessidade de dar um basta nisso. Assim, estabeleceram que a existência de Deus pode ser comprovada pela razão espontânea, e precisaram determinar o que consideravam argumentos para comprovar tal fato. Existem, é claro, diversos deles, mas abordarei apenas alguns.

O ARGUMENTO DA CAUSA PRIMORDIAL
Talvez o mais simples e mais fácil de entender seja o argumento da Causa Primordial. (Defende-se que tudo o que vemos neste mundo tem uma causa e, à medida que retrocedermos cada vez mais na corrente de causas, chegaremos obrigatoriamente à Causa Primordial, e essa Causa Primordial recebe o nome de Deus.) Tal argumento, suponho, não tem muito peso nos dias de hoje, porque, em primeiro lugar, já não é mais o que era. Os filósofos e os homens de ciência têm estudado muito a causa, e ela já não tem nem de longe a vitalidade que tinha; mas, fora isso, dá para ver que o argumento de que obrigatoriamente existe uma Causa Primordial não pode ter nenhuma validade. Posso dizer que, quando eu era jovem e debatia essas questões com muita seriedade em minha mente, durante muito tempo aceitei o argumento da Causa Primordial, até o dia em que, aos dezoito anos, li a autobiografia de John Stuart Mill 13 e lá encontrei a seguinte frase: “Meu pai me ensinou que a pergunta ‘Quem me fez?’ não pode ser respondida, já que imediatamente sugere a pergunta seguinte ‘Quem fez Deus?’”. Essa frase extremamente simples me mostrou, como ainda penso, que o argumento da Causa Primordial é uma falácia. Se tudo precisa ter uma causa, então também Deus deve ter uma causa. Se é possível que exista qualquer coisa sem causa, isso tanto pode ser o mundo quanto Deus, de modo que não pode haver validação nesse argumento. Trata-se exatamente da mesma natureza da visão hinduísta de que o mundo repousava sobre um elefante, e que o elefante repousava sobre uma tartaruga; e quando alguém perguntava “Mas e a tartaruga?”, o indiano respondia: “Que tal mudarmos de assunto?”. O argumento, de fato, não é melhor do que isso. Não há razão por que o mundo não possa ter passado a existir sem causa nenhuma; tampouco, por outro lado, existe qualquer razão que o impeça de ter sempre existido. Não há razão para supor que o mundo teve alguma espécie de início. A ideia de que as coisas precisam obrigatoriamente ter um início na verdade se deve à pobreza da nossa imaginação. Portanto, talvez eu não precise mais perder tempo com o argumento relativo à Causa Primordial.

O ARGUMENTO DA LEI NATURAL
Em seguida, há o argumento muito comum da lei natural. Esse foi um dos argumentos preferidos ao longo de todo o século XVIII, principalmente sob a influência de sir Isaac Newton e de sua cosmogonia. As pessoas observavam os planetas girando em torno do sol de acordo com a lei da gravidade, e pensavam que Deus tinha dado um comando a esses planetas para que se movessem daquela maneira específica, sendo por isso que o faziam. Essa era, obviamente, uma explicação conveniente e simples, que as poupava do trabalho de ter de procurar explicações mais elaboradas para a lei da gravidade. Hoje, explicamos a lei da gravidade de uma maneira um tanto complicada, introduzida por Einstein. Não me proponho a fazer uma palestra a respeito da interpretação de Einstein para a lei da gravidade, porque, mais uma vez, isso demoraria algum tempo; de qualquer forma, já não dispomos mais daquele tipo de lei natural que existia no sistema newtoniano, em que, por alguma razão que ninguém era capaz de entender, a natureza agia de maneira uniforme. Hoje, descobrimos que muitas coisas que acreditávamos serem leis naturais na verdade são convenções humanas. Sabemos que, até mesmo nas mais remotas profundezas do espaço estelar, três pés somam uma jarda. Esse é, sem dúvida, um fato muito notável, mas dificilmente diríamos que seja uma lei da natureza. E muitíssimas coisas que foram consideradas leis da natureza são desse tipo. Por outro lado, quando for possível chegar a qualquer conhecimento sobre o que os átomos são de fato capazes de fazer, descobrir-se-á que eles estão bem menos sujeitos a leis do que as pessoas pensavam, e que as leis a que se chega são médias estatísticas, exatamente do tipo que poderia emergir do acaso. Existe, como todos sabemos, uma lei que diz que, ao lançarmos dados, obteremos seis duplos apenas uma a cada 36 vezes aproximadamente, e não consideramos isso como prova de que a queda dos dados é regulada pelo plano divino; ao contrário, se o duplo seis saísse toda vez, poderíamos pensar que o plano divino existe. As leis da natureza são desse tipo no que diz respeito à maior parte delas. São médias estatísticas tais como as que emergiriam das leis do acaso; e isso faz com que essa coisa toda de lei natural seja muito menos impressionante do que era anteriormente. Bem separado disso, representando o estado momentâneo da ciência que pode transformar o amanhã, toda a ideia de que as leis naturais implicam um determinador das leis se deve à confusão entre as leis naturais e as humanas. As leis humanas são comandos que ordenam que se aja de uma certa maneira, de modo que cada um possa escolher se comportar ou não se comportar; mas as leis naturais são uma descrição de como as coisas de fato se comportam e, por serem uma mera descrição do que elas de fato fazem, não dá para argumentar que existe obrigatoriamente alguém que lhes disse para fazer isso, porque, mesmo se supusermos que existe, então a seguinte questão seria suscitada: “Por que Deus estabeleceu exatamente estas leis naturais, e não outras?”. Se a resposta for que Ele fez isso apenas a seu bel-prazer, e sem razão nenhuma, então descobre-se que existe alguma coisa que não está sujeita à lei, de modo que a linha da lei natural é interrompida. Se for dito, como os teólogos mais ortodoxos dizem, que em todas as leis estabelecidas por Deus existe uma razão para que determinada lei fosse promulgada em detrimento de outras – tendo como razão, é claro, criar o melhor universo, apesar de ser impossível pensar assim ao examiná-lo –, se houvesse uma razão para as leis que Deus estabeleceu, então o próprio Deus estaria sujeito à lei, de modo que não existe nenhuma vantagem em introduzir Deus como intermediário. Na verdade, tem-se uma lei alheia e anterior aos éditos divinos, e Deus não atende ao objetivo, porque Ele não é o legislador supremo. Em resumo, toda essa discussão a respeito da lei natural não tem mais nem de longe a força que tinha. Estou viajando no tempo na minha revisão dos argumentos. Os argumentos usados para a existência de Deus mudam de caráter à medida que o tempo passa. No início, eram argumentos intelectuais rígidos, que incorporavam certas falácias bem definidas. Quando chegamos aos tempos modernos, elas se tornam menos respeitadas intelectualmente e cada vez mais afetadas por um tipo de moralização vaga.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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