Para
abordar a questão da existência de Deus, que é uma questão ampla
e séria, pedirei licença para tratar dela de maneira um tanto
resumida – se eu fosse tentar abordá-la de qualquer maneira
adequada, precisaria mantê-los aqui até o Final dos Tempos. Os
senhores sabem, é claro, que a Igreja Católica definiu como dogma o
fato de a existência de Deus poder ser provada pela razão
espontânea. Esse é um dogma um tanto curioso, mas é um dos dogmas
deles. Precisaram introduzi-lo porque, a certa altura, os
livres-pensadores adotaram o hábito de dizer que existiam tais e
tais argumentos por meio dos quais a pura e simples razão poderia
concluir que Deus não existe, mas é claro que eles sabiam, por
questão de fé, que Deus existe. Esses argumentos e razões foram
expostos muito longamente, e a Igreja Católica sentiu a necessidade
de dar um basta nisso. Assim, estabeleceram que a existência de Deus
pode ser comprovada pela razão espontânea, e precisaram determinar
o que consideravam argumentos para comprovar tal fato. Existem, é
claro, diversos deles, mas abordarei apenas alguns.
O
ARGUMENTO DA CAUSA PRIMORDIAL
Talvez
o mais simples e mais fácil de entender seja o argumento da Causa
Primordial. (Defende-se que tudo o que vemos neste mundo tem uma
causa e, à medida que retrocedermos cada vez mais na corrente de
causas, chegaremos obrigatoriamente à Causa Primordial, e essa Causa
Primordial recebe o nome de Deus.) Tal argumento, suponho, não tem
muito peso nos dias de hoje, porque, em primeiro lugar, já não é
mais o que era. Os filósofos e os homens de ciência têm estudado
muito a causa, e ela já não tem nem de longe a vitalidade que
tinha; mas, fora isso, dá para ver que o argumento de que
obrigatoriamente existe uma Causa Primordial não pode ter nenhuma
validade. Posso dizer que, quando eu era jovem e debatia essas
questões com muita seriedade em minha mente, durante muito tempo
aceitei o argumento da Causa Primordial, até o dia em que, aos
dezoito anos, li a autobiografia de John Stuart Mill 13 e lá
encontrei a seguinte frase: “Meu pai me ensinou que a pergunta
‘Quem me fez?’ não pode ser respondida, já que imediatamente
sugere a pergunta seguinte ‘Quem fez Deus?’”. Essa frase
extremamente simples me mostrou, como ainda penso, que o argumento da
Causa Primordial é uma falácia. Se tudo precisa ter uma causa,
então também Deus deve ter uma causa. Se é possível que exista
qualquer coisa sem causa, isso tanto pode ser o mundo quanto Deus, de
modo que não pode haver validação nesse argumento. Trata-se
exatamente da mesma natureza da visão hinduísta de que o mundo
repousava sobre um elefante, e que o elefante repousava sobre uma
tartaruga; e quando alguém perguntava “Mas e a tartaruga?”, o
indiano respondia: “Que tal mudarmos de assunto?”. O argumento,
de fato, não é melhor do que isso. Não há razão por que o mundo
não possa ter passado a existir sem causa nenhuma; tampouco, por
outro lado, existe qualquer razão que o impeça de ter sempre
existido. Não há razão para supor que o mundo teve alguma espécie
de início. A ideia de que as coisas precisam obrigatoriamente ter um
início na verdade se deve à pobreza da nossa imaginação.
Portanto, talvez eu não precise mais perder tempo com o argumento
relativo à Causa Primordial.
O
ARGUMENTO DA LEI NATURAL
Em
seguida, há o argumento muito comum da lei natural. Esse foi um dos
argumentos preferidos ao longo de todo o século XVIII,
principalmente sob a influência de sir Isaac Newton e de sua
cosmogonia. As pessoas observavam os planetas girando em torno do sol
de acordo com a lei da gravidade, e pensavam que Deus tinha dado um
comando a esses planetas para que se movessem daquela maneira
específica, sendo por isso que o faziam. Essa era, obviamente, uma
explicação conveniente e simples, que as poupava do trabalho de ter
de procurar explicações mais elaboradas para a lei da gravidade.
Hoje, explicamos a lei da gravidade de uma maneira um tanto
complicada, introduzida por Einstein. Não me proponho a fazer uma
palestra a respeito da interpretação de Einstein para a lei da
gravidade, porque, mais uma vez, isso demoraria algum tempo; de
qualquer forma, já não dispomos mais daquele tipo de lei natural
que existia no sistema newtoniano, em que, por alguma razão que
ninguém era capaz de entender, a natureza agia de maneira uniforme.
Hoje, descobrimos que muitas coisas que acreditávamos serem leis
naturais na verdade são convenções humanas. Sabemos que, até
mesmo nas mais remotas profundezas do espaço estelar, três pés
somam uma jarda. Esse é, sem dúvida, um fato muito notável, mas
dificilmente diríamos que seja uma lei da natureza. E muitíssimas
coisas que foram consideradas leis da natureza são desse tipo. Por
outro lado, quando for possível chegar a qualquer conhecimento sobre
o que os átomos são de fato capazes de fazer, descobrir-se-á que
eles estão bem menos sujeitos a leis do que as pessoas pensavam, e
que as leis a que se chega são médias estatísticas, exatamente do
tipo que poderia emergir do acaso. Existe, como todos sabemos, uma
lei que diz que, ao lançarmos dados, obteremos seis duplos apenas
uma a cada 36 vezes aproximadamente, e não consideramos isso como
prova de que a queda dos dados é regulada pelo plano divino; ao
contrário, se o duplo seis saísse toda vez, poderíamos pensar que
o plano divino existe. As leis da natureza são desse tipo no que diz
respeito à maior parte delas. São médias estatísticas tais como
as que emergiriam das leis do acaso; e isso faz com que essa coisa
toda de lei natural seja muito menos impressionante do que era
anteriormente. Bem separado disso, representando o estado momentâneo
da ciência que pode transformar o amanhã, toda a ideia de que as
leis naturais implicam um determinador das leis se deve à confusão
entre as leis naturais e as humanas. As leis humanas são comandos
que ordenam que se aja de uma certa maneira, de modo que cada um
possa escolher se comportar ou não se comportar; mas as leis
naturais são uma descrição de como as coisas de fato se comportam
e, por serem uma mera descrição do que elas de fato fazem, não dá
para argumentar que existe obrigatoriamente alguém que lhes disse
para fazer isso, porque, mesmo se supusermos que existe, então a
seguinte questão seria suscitada: “Por que Deus estabeleceu
exatamente estas leis naturais, e não outras?”. Se a resposta for
que Ele fez isso apenas a seu bel-prazer, e sem razão nenhuma, então
descobre-se que existe alguma coisa que não está sujeita à lei, de
modo que a linha da lei natural é interrompida. Se for dito, como os
teólogos mais ortodoxos dizem, que em todas as leis estabelecidas
por Deus existe uma razão para que determinada lei fosse promulgada
em detrimento de outras – tendo como razão, é claro, criar o
melhor universo, apesar de ser impossível pensar assim ao examiná-lo
–, se houvesse uma razão para as leis que Deus estabeleceu, então
o próprio Deus estaria sujeito à lei, de modo que não existe
nenhuma vantagem em introduzir Deus como intermediário. Na verdade,
tem-se uma lei alheia e anterior aos éditos divinos, e Deus não
atende ao objetivo, porque Ele não é o legislador supremo. Em
resumo, toda essa discussão a respeito da lei natural não tem mais
nem de longe a força que tinha. Estou viajando no tempo na minha
revisão dos argumentos. Os argumentos usados para a existência de
Deus mudam de caráter à medida que o tempo passa. No início, eram
argumentos intelectuais rígidos, que incorporavam certas falácias
bem definidas. Quando chegamos aos tempos modernos, elas se tornam
menos respeitadas intelectualmente e cada vez mais afetadas por um
tipo de moralização vaga.
Bertrand
Russell, in Por que não sou cristão
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