Passou
se nos tempos dos portugueses. O casal eram os Esteves, gente
lustrosa, funcionários de primeira ordem. Viviam em eterna aflição:
o menino nascera enfezadito, desvitaminado, sem hidratos nem
carbonos. Sua magreza se via mais que o corpo: ele tinha o esterno
muito externo. E mais estranho: era atacado de choros convulsos.
Durante os achaques, o menino sofria de respiração, parecia desfiar
o ar, o peito lhe fugia pelos lábios.
Contrataram
a negra Marcelinda para cuidados do único filho. A patroa, Dona
Clementina, se acometia de maternas invejas: a criança se calava
apenas no colo de Marcelinda. Se encostava na imensa redondez da ama
e sossegava a pontos de feto. A negra rodava com ele, como se
dançasse, e chamava lhe:
— Nwana
wa mina!
Em
casa ninguém percebia a língua. Talvez por isso as palavras
deixavam um sabor amargo. Não encontravam graça que África
entrasse assim na intimidade do lar. Com o tempo, uma certeza se foi
fundando: o bebé escapava à biológica maternidade. Em doença,
temor, susto: só a empregada consolava a criança. O despeito minava
o peito da mãe.
— Não
a quero cá. Trate de a mandar embora.
O
pai ainda tentava aguar fervuras. Mas Dona Clementina não perdoava,
queria ver a negra gorda dali para longe. O Esteves tricotava uma
lógica:
— Devemos
é dar graças a Deus por o menino se dar bem com ela.
Mas
as raivas maternas não se aplacavam. Os pesadelos enrodilhavam as
noites de Dona Clementina. No leito do sonho ela via o filho deslizar
por uma fresta súbita, engolido pelas húmidas trevas. Ela acorria,
em pânico. Lá do fundo obscuro se escutava a voz de Marcelinda, em
suave canção de embalar. E o filho sorria para a criada, incapaz de
ver a silhueta da mãe. A senhora despertava e, transpirada, se
esgueirava para os aposentos da criança para a apertar em seu colo.
Num
dado serão, os Esteves receberam visitas de outros portugueses. No
serão se concertaram fantasmas. As senhoras consolaram os medos de
Clementina: “é natural, as pretas tem experiência de dúzia de
filhos”.
E
outro ironizou:
— Em
África, todos são filhos uns dos outros.
Alguém
ainda inquiriu:
— A
vossa quantos tem?
— Olhe
que nunca perguntámos a Marcelinda...
— Deve
ter uma data deles. Elas são assim, nunca vi quem tanto parisse…
E
riram-se. Menos o Esteves. Naquela noite, o português se revirou, em
insonolência. Manhã seguinte, o patrão invadiu a penumbra da
cozinha e se dirigiu à empregada. Quis saber dos filhos dela.
Marcelinda encolheu a vergonha atrás do ombro e, em silêncio,
sorriu.
— Então
Marcelinda? Tem tantos que perdeu a conta?
— Sim,
patrão.
— A
sério, perdeu a conta?
— Sim,
patrão, perdi.
Os
Esteves se condoeram. Deram lhe roupas velhas, coisas que iam
deixando de servir aos filhos dos amigos. Ela ia aceitando com
gratidão. Embrulhava com mil cuidados, como se fossem tesouros por
estrear. E, em silêncio, se retirava, deixando se engolir pelo
escuro de cada noite.
Um
dia, enquanto vestia o filho, Dona Clementina encontrou um fio de
algodão amarrando o ventre do menino. Chamou a empregrada e exigiu
saber as proveniências do achado. A negra Marcelinda gaguejou:
— É
remédio, senhora...
— Remédio?
— Para
o menino não sofrer dessas tosses...
Foram
palavras, últimas. Quando Esteves chegou a casa já a sentença
estava tomada. Dona Patroa tinha expulsado a criada. O marido ficou
calado, grave. Sem coragem de dizer nada, escutando a esposa,
indignada, rodando pela casa exibindo entre os dedos o pernicioso
amuleto: “Não admito, não admito!”
O
tempo passou, definitivo, enquanto a patroa desesperava: a criança
não dava tréguas ao choro. A mãe desconhecia maneiras de a
acalmar. Não sabia como suster febres, aplacar choros, segurar os
gritos do menino. A portuguesa já não dormia, estava nos últimos
fôlegos. O patrão decidiu-se: “hoje mesmo vou a casa de
Marcelinda”. A meio da noite ele se levantou, sorrateiro. Saiu de
casa sem saber para onde. Afinal, qual a morada do raio da preta?
Espantou se como alguém vive em nossa casa e tão pouco sabemos
dela.
Circulou
por ruelas e becos, empestou olhos e sapatos. O tuga se embaraçou em
meios tão humildes. Só o tamanho da sua decisão o fazia continuar.
Perguntou, confirmou, rectificou. Ao cabo de muito susto, ele
alcançou a casinha de Marcelinda. Entrou no pátio, foi chamando. No
escuro, indistinguiu o próprio nariz. O português se assustou ao
colidir com enorme volume de Marcelinda. E logo lhe entregou pedido
desesperado: a empregada que regressasse. Pelo amor de Deus. Ou, se
ela preferisse, pelo amor do menino. Sem uma palavra, Marcelinda se
internou no escuro, além porta. Apareceu, então, um incerto homem,
tão magro que a camisola interior mais parecia um sobretudo:
— Que
se passa?
Esteves
lhe explica o propósito da visita, acreditando ser ele o marido da
criada. Marcelinda está alheia aos dois homens, arrumando roupas num
saco.
— Eh
pá! Isto não é qualquer maneira. Chega, leva, vai?!
O
português desencarteira umas tantas quantias. O homem embolsa os
tacos como se os metesse não em roupa mas na alma. Marcelinda se
afunila para entrar no carro do patrão. Seguem viagem, em silêncio.
O patrão não está certo se a criada acompanhou a cena à saída de
casa.
— Paguei
um adiatamento ao seu... àquele homem.
— Eu
não pedi dinheiro.
— O
que quer então?
— Eu
só quero o meu menino.
Meu
menino!? O patrão, com mil rodeios, explica a Marcelinda quanto ela
deve evitar a expressão. Não é por nada, mas a senhora não gosta.
E sorri, nervoso. Nunca ele tinha pedido assim nada a alguém de
outra raça.
No
corredor, entram pé ante pé. A casa está deitada. O patrão aponta
o velho quarto dos fundos e pede silêncio, não vá o miúdo
acordar. Inútil. Sem que se entendesse como, o miúdo tinha dado
conta da chegada. E, sem mais, se arremessou no colo da criada,
exilado do mundo. Ali se deixou como se aquele fosse o seu primeiro e
único ventre.
Na
manhã seguinte, Esteves prolongou se no sono. A noitada anterior o
esgotara. Despertou com os gritos da mulher.
— Meu
filho! Onde está o meu filho?
O
pensamento lhe veio à cabeça: a preta fugira com o menino! Vestiu
se às pressas e desandou para casa de Marcelinda. A seu lado,
prantorosa, seguia a esposa. Cruzaram os subúrbios, circundaram
palhotas até chegarem ao mesmo lugar onde ele estivera antes. Dona
Clementina ficou no carro. Esteves entrou pela casa mas não
encontrou a empregada. Apenas deparou com o mesmo homem da anterior
noite.
— Marcelinda?
Não lhe vi desde ontem.
Esteves
insistiu, esgravatando hipóteses de paradeiros. E ali, à entrada,
lhe surgem os sacos com as roupas de crianças que foram sendo
oferecidos à empregada. Intactos, como vieram. Então ela não
distribuíra as prendas pelos filhos?
— Filhos?
Quais filhos?
— Os
seus... os filhos dela.
— Marcelinda
não pode ter filhos, nunca teve.
Esteves
se calou. Hesitou, subtraiu à soma dos passos. Estava cumprindo a
partida. Já na umbreira, porém, se reticenciou:
— O
que quer dizer nwana wa mina?
— Eh
pá! Isso já é nosso dialeto. O senhor está aprender?
— Não,
só quero saber o significado dessa expressão.
— Quer
dizer “meu filho”.
O
português se instalou no carro. A esposa o esperava, lenço aparando
as lágrimas. O magrizelento ainda assomou à porta e gritou:
— Não
diga nada a Marcelinda.
— Que
estivemos aqui?
— Não.
Não fale sobre isso de ela nunca ter tido filhos.
Subitamente,
Dona Clementina deixou de chorar. Esteves espreitou a, antes de
colocar o carro em funcionamento. Queria saber o que fazer, onde
procurar. O magricelas sugeriu então que eles se dirigissem ao
curandeiro, ali a dois quarteirões. Talvez Marcelinda estivesse lá
a cerimoniar o miúdo. Esteves acatou a sugestão. Foi devagarinho,
perdido, acompanhado só pelo silêncio da esposa. Encontrou
Marcelinda saindo para a rua. A empregada trazia o menino dormindo em
suas costas. Parecia esperar o patrão e entrou para a viatura sem
dizer palavra.
— Vamos?
O
miúdo, dormindo, é posto no banco de trás, entre as duas mulheres,
empregada e patroa. A viatura arrancou, devagarosa. Das mãos de Dona
Clementina surgiu o fio abençoador, aquele mesmo que havia motivado
a despedida. Os olhos da negra aterraram, receosos.
— Lembra
este fio, este, dos vossos feitiços?
Mas
a patroa não pareceu zangada. E lhe pediu:
— Marcelinda:
me ajude a colocar o fio no menino.
E
as mãos de ambas, em simétrica maternidade, circundaram o corpo da
criança.
Mia
Couto,
in Na
berma de nenhuma estrada
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