segunda-feira, 5 de março de 2018

A bênção

Passou se nos tempos dos portugueses. O casal eram os Esteves, gente lustrosa, funcionários de primeira ordem. Viviam em eterna aflição: o menino nascera enfezadito, desvitaminado, sem hidratos nem carbonos. Sua magreza se via mais que o corpo: ele tinha o esterno muito externo. E mais estranho: era atacado de choros convulsos. Durante os achaques, o menino sofria de respiração, parecia desfiar o ar, o peito lhe fugia pelos lábios.
Contrataram a negra Marcelinda para cuidados do único filho. A patroa, Dona Clementina, se acometia de maternas invejas: a criança se calava apenas no colo de Marcelinda. Se encostava na imensa redondez da ama e sossegava a pontos de feto. A negra rodava com ele, como se dançasse, e chamava lhe:
Nwana wa mina!
Em casa ninguém percebia a língua. Talvez por isso as palavras deixavam um sabor amargo. Não encontravam graça que África entrasse assim na intimidade do lar. Com o tempo, uma certeza se foi fundando: o bebé escapava à biológica maternidade. Em doença, temor, susto: só a empregada consolava a criança. O despeito minava o peito da mãe.
Não a quero cá. Trate de a mandar embora.
O pai ainda tentava aguar fervuras. Mas Dona Clementina não perdoava, queria ver a negra gorda dali para longe. O Esteves tricotava uma lógica:
Devemos é dar graças a Deus por o menino se dar bem com ela.
Mas as raivas maternas não se aplacavam. Os pesadelos enrodilhavam as noites de Dona Clementina. No leito do sonho ela via o filho deslizar por uma fresta súbita, engolido pelas húmidas trevas. Ela acorria, em pânico. Lá do fundo obscuro se escutava a voz de Marcelinda, em suave canção de embalar. E o filho sorria para a criada, incapaz de ver a silhueta da mãe. A senhora despertava e, transpirada, se esgueirava para os aposentos da criança para a apertar em seu colo.
Num dado serão, os Esteves receberam visitas de outros portugueses. No serão se concertaram fantasmas. As senhoras consolaram os medos de Clementina: “é natural, as pretas tem experiência de dúzia de filhos”.
E outro ironizou:
Em África, todos são filhos uns dos outros.
Alguém ainda inquiriu:
A vossa quantos tem?
Olhe que nunca perguntámos a Marcelinda...
Deve ter uma data deles. Elas são assim, nunca vi quem tanto parisse…
E riram-se. Menos o Esteves. Naquela noite, o português se revirou, em insonolência. Manhã seguinte, o patrão invadiu a penumbra da cozinha e se dirigiu à empregada. Quis saber dos filhos dela. Marcelinda encolheu a vergonha atrás do ombro e, em silêncio, sorriu.
Então Marcelinda? Tem tantos que perdeu a conta?
Sim, patrão.
A sério, perdeu a conta?
Sim, patrão, perdi.
Os Esteves se condoeram. Deram lhe roupas velhas, coisas que iam deixando de servir aos filhos dos amigos. Ela ia aceitando com gratidão. Embrulhava com mil cuidados, como se fossem tesouros por estrear. E, em silêncio, se retirava, deixando se engolir pelo escuro de cada noite.
Um dia, enquanto vestia o filho, Dona Clementina encontrou um fio de algodão amarrando o ventre do menino. Chamou a empregrada e exigiu saber as proveniências do achado. A negra Marcelinda gaguejou:
É remédio, senhora...
Remédio?
Para o menino não sofrer dessas tosses...
Foram palavras, últimas. Quando Esteves chegou a casa já a sentença estava tomada. Dona Patroa tinha expulsado a criada. O marido ficou calado, grave. Sem coragem de dizer nada, escutando a esposa, indignada, rodando pela casa exibindo entre os dedos o pernicioso amuleto: “Não admito, não admito!”
O tempo passou, definitivo, enquanto a patroa desesperava: a criança não dava tréguas ao choro. A mãe desconhecia maneiras de a acalmar. Não sabia como suster febres, aplacar choros, segurar os gritos do menino. A portuguesa já não dormia, estava nos últimos fôlegos. O patrão decidiu-se: “hoje mesmo vou a casa de Marcelinda”. A meio da noite ele se levantou, sorrateiro. Saiu de casa sem saber para onde. Afinal, qual a morada do raio da preta? Espantou se como alguém vive em nossa casa e tão pouco sabemos dela.
Circulou por ruelas e becos, empestou olhos e sapatos. O tuga se embaraçou em meios tão humildes. Só o tamanho da sua decisão o fazia continuar. Perguntou, confirmou, rectificou. Ao cabo de muito susto, ele alcançou a casinha de Marcelinda. Entrou no pátio, foi chamando. No escuro, indistinguiu o próprio nariz. O português se assustou ao colidir com enorme volume de Marcelinda. E logo lhe entregou pedido desesperado: a empregada que regressasse. Pelo amor de Deus. Ou, se ela preferisse, pelo amor do menino. Sem uma palavra, Marcelinda se internou no escuro, além porta. Apareceu, então, um incerto homem, tão magro que a camisola interior mais parecia um sobretudo:
Que se passa?
Esteves lhe explica o propósito da visita, acreditando ser ele o marido da criada. Marcelinda está alheia aos dois homens, arrumando roupas num saco.
Eh pá! Isto não é qualquer maneira. Chega, leva, vai?!
O português desencarteira umas tantas quantias. O homem embolsa os tacos como se os metesse não em roupa mas na alma. Marcelinda se afunila para entrar no carro do patrão. Seguem viagem, em silêncio. O patrão não está certo se a criada acompanhou a cena à saída de casa.
Paguei um adiatamento ao seu... àquele homem.
Eu não pedi dinheiro.
O que quer então?
Eu só quero o meu menino.
Meu menino!? O patrão, com mil rodeios, explica a Marcelinda quanto ela deve evitar a expressão. Não é por nada, mas a senhora não gosta. E sorri, nervoso. Nunca ele tinha pedido assim nada a alguém de outra raça.
No corredor, entram pé ante pé. A casa está deitada. O patrão aponta o velho quarto dos fundos e pede silêncio, não vá o miúdo acordar. Inútil. Sem que se entendesse como, o miúdo tinha dado conta da chegada. E, sem mais, se arremessou no colo da criada, exilado do mundo. Ali se deixou como se aquele fosse o seu primeiro e único ventre.
Na manhã seguinte, Esteves prolongou se no sono. A noitada anterior o esgotara. Despertou com os gritos da mulher.
Meu filho! Onde está o meu filho?
O pensamento lhe veio à cabeça: a preta fugira com o menino! Vestiu se às pressas e desandou para casa de Marcelinda. A seu lado, prantorosa, seguia a esposa. Cruzaram os subúrbios, circundaram palhotas até chegarem ao mesmo lugar onde ele estivera antes. Dona Clementina ficou no carro. Esteves entrou pela casa mas não encontrou a empregada. Apenas deparou com o mesmo homem da anterior noite.
Marcelinda? Não lhe vi desde ontem.
Esteves insistiu, esgravatando hipóteses de paradeiros. E ali, à entrada, lhe surgem os sacos com as roupas de crianças que foram sendo oferecidos à empregada. Intactos, como vieram. Então ela não distribuíra as prendas pelos filhos?
Filhos? Quais filhos?
Os seus... os filhos dela.
Marcelinda não pode ter filhos, nunca teve.
Esteves se calou. Hesitou, subtraiu à soma dos passos. Estava cumprindo a partida. Já na umbreira, porém, se reticenciou:
O que quer dizer nwana wa mina?
Eh pá! Isso já é nosso dialeto. O senhor está aprender?
Não, só quero saber o significado dessa expressão.
Quer dizer “meu filho”.
O português se instalou no carro. A esposa o esperava, lenço aparando as lágrimas. O magrizelento ainda assomou à porta e gritou:
Não diga nada a Marcelinda.
Que estivemos aqui?
Não. Não fale sobre isso de ela nunca ter tido filhos.
Subitamente, Dona Clementina deixou de chorar. Esteves espreitou a, antes de colocar o carro em funcionamento. Queria saber o que fazer, onde procurar. O magricelas sugeriu então que eles se dirigissem ao curandeiro, ali a dois quarteirões. Talvez Marcelinda estivesse lá a cerimoniar o miúdo. Esteves acatou a sugestão. Foi devagarinho, perdido, acompanhado só pelo silêncio da esposa. Encontrou Marcelinda saindo para a rua. A empregada trazia o menino dormindo em suas costas. Parecia esperar o patrão e entrou para a viatura sem dizer palavra.
Vamos?
O miúdo, dormindo, é posto no banco de trás, entre as duas mulheres, empregada e patroa. A viatura arrancou, devagarosa. Das mãos de Dona Clementina surgiu o fio abençoador, aquele mesmo que havia motivado a despedida. Os olhos da negra aterraram, receosos.
Lembra este fio, este, dos vossos feitiços?
Mas a patroa não pareceu zangada. E lhe pediu:
Marcelinda: me ajude a colocar o fio no menino.
E as mãos de ambas, em simétrica maternidade, circundaram o corpo da criança.
Mia Couto, in Na berma de nenhuma estrada

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