quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Uma noite prodigiosa

A noite foi também prodigiosa. Detive-me um momento diante da casa de meu conhecido e olhei para dentro através das janelas. “Ali mora um homem” — pensei — “que leva avante seu trabalho ano após ano, que lê e comenta textos, procura interrelações entre as mitologias pré-asiáticas e indicas, e sente satisfação com isto, pois crê no valor de seu trabalho, crê na ciência, de quem é fiel servidor; acredita no valor do saber, que se deva acumular cultura, pois crê no progresso e no desenvolvimento. Não viveu a guerra nem a revolução das bases do pensamento humano feita por Einstein (‘Isso é algo que diz respeito somente aos matemáticos’ — pensa ele); não percebe em absoluto que em seu redor se está preparando a próxima guerra; considera odiosos os judeus e os comunistas; é um bom menino, irreflexivo, alegre, que se considera importante e invejável”. Assim mesmo resolvi entrar; fui recebido por uma criada de avental branco, que por algum pressentimento me fez notar com exatidão onde deixava meu chapéu e o sobretudo; introduziu-me numa sala cauda e luminosa, rogou-me que esperasse; aí, em vez de rezar uma oração ou dormitar um pouco, segui um impulso brincalhão e apanhei a primeira coisa que estava a meu alcance, era uma gravura e representava o poeta Goethe, um ancião cheio de caráter, genialmente penteado e com o rosto muito bem modelado, no qual não faltava nem o célebre fogo do olhar nem o traço de solitário com um ligeiro véu de cortesia detalhes que devem ter exigido grande trabalho ao artista Conseguira ele dar a este demoníaco ancião, sem prejuízo de sua profundidade, um ar algo acadêmico e ao mesmo tempo teatral de autodomínio e probidade, e o representara, enfim como um senhor formoso em sua ancianidade, próprio para adornar qualquer casa burguesa. Provavelmente a estampa não fosse mais estúpida que as outras dessa classe; todos aqueles nobres redentores, apóstolos, heróis, intelectuais e estadistas, confeccionados por aplicados artífices, me irritavam mais talvez pelo virtuosismo com que eram tratados. Fosse como fosse, talvez devido à minha irritabilidade habitual, aquela vã e pretensiosa representação do velho Goethe despertou em mim uma dissonância fatal e me deu a entender que não estava no lugar devido. Ali era o ambiente familiar dos grandes mestres belamente estilizados e das grandezas nacionais, e não dos lobos da estepe. Se o dono da casa se tivesse apresentado, ter-me-ia sido fácil retirar-me em seguida com aceitáveis pretextos. Mas foi a dona da casa quem entrou e me conformei com a sorte, embora estivesse prenunciando desgraça. Cumprimentamo-nos, e ao primeiro desacordo seguiram-se outros mais sonoros. A senhora elogiou minha boa aparência, embora eu estivesse mais que convencido do muito que mudara desde o nosso último encontro; já ao apertar-me os dedos gotosos, fez-me recordar minhas terríveis dores reumáticas. E logo perguntou como ia minha mulher, tendo eu lhe dito que ela me havia abandonado e que o nosso casamento estava desfeito. Estávamos alegres quando entrou o professor. Ele também me cumprimentou alegremente, e o falso e o cômico da situação chegaram logo a um belo clímax. Trazia um jornal à mão, um diário que assinava, órgão do partido militarista exaltado, e após haver-me dado a mão, apontou o jornal e disse que nele havia um artigo sobre um indivíduo que tinha o mesmo nome que eu, um tal de Haller, articulista, que devia ser um indivíduo sem pátria, pois zombara do Kaiser e afirmara que sua pátria não era menos culpada da guerra do que os países inimigos. Que espécie de indivíduo devia ser!? A redação respondera energicamente a esse tipo e o expusera à execração pública. Passamos a outro assunto quando viu que o tema não me interessava, e nem de longe ocorreu a ambos a possibilidade de aquele monstro estar sentado à sua frente, no entanto, a verdade é que estava, pois o horrível indivíduo era eu. Deixa para lá! para que perturbar e assustar as pessoas! Ri para dentro, sabendo que lá se fora a esperança de sentir algo agradável àquela noite. Recordo-me claramente do instante em que o professor começou a falar de Haller, o traidor de sua pátria. Foi aí que o horrendo sentimento de depressão e desespero, que progressivamente crescia em meu interior desde a cena do enterro, se materializou numa rude opressão, chegou ao clímax de uma angústia corporal (no ventre), despertando dentro de mim um terrível e sufocante presságio. Tive a impressão de que algo estava à minha espera, de que se aproximava um perigo. Felizmente anunciaram que o jantar estava à mesa. Passamos à sala de jantar, e enquanto me esforçava por dizer ou perguntar algo sem importância, comi mais do que de costume e me senti cada vez mais digno de lástima. Santo Deus — pensava continuamente — por que nos sacrificas tão severamente? Percebi claramente que meus anfitriões também não se sentiam à vontade e que sua cordialidade era forçada, fosse porque eu me comportasse de maneira tão lamentável, fosse em consequência talvez de algum desentendimento doméstico. Não houve uma só pergunta que me fizessem que recebesse de mim uma resposta exata; logo me vi embaraçado em minhas mentiras e tive de lutar contra o asco que cada palavra me causava. Por fim, à guisa de mudar de assunto, comecei a falar-lhes a propósito do enterro que presenciara naquela manha. Mas não consegui encontrar o tom; minhas recorrências o humor soaram vazias e cada vez mais nos afastávamos uns os outros. Em meu interior o Lobo da Estepe arreganhava os dentes com ironia; e ao chegar a sobremesa, o silêncio já havia tomado conta de nós três. Regressamos à sala de estar onde tomamos café e licor na esperança de que isso pudesse animar-nos. Mas ali, entretanto, voltou a cair-me sob a vista a figura do príncipe dos poetas, embora estivesse colocado sobre uma cômoda a um canto da sala. Sem conseguir livrar-me dele, levantei-me e apanhei-o de novo, embora ouvisse em meu interior a advertência de que estava prestes a cometer uma indelicadeza. De tal forma me senti obcecado pelo insustentável da situação que achei chegado o momento de animar meus anfitriões, arrastá-los para fora de sua comodidade e colocá-los de acordo comigo, senão, do contrário, sobreviria certamente uma explosão.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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