Eu
falei que meu colesterol está alto, muito alto? 270! Agora terei que
esperar três meses para um novo exame e finalmente escapar da
vigilância secreta de minha mulher.
Por
enquanto, sofro por antecipação. Aprendi que “prevenção” é
somente antecipar o sofrimento. Sofre-se mais. Sofre-se antes de se
ter feito qualquer coisa.
Vem
funcionando. Fui beliscar uma torta de pera e já vejo as
sobrancelhas arqueadas de Cínthya reprimindo a crosta de massa
podre; e ela nem estava comigo naquele momento.
Repare
que disse “beliscar”. Descobrimos quem entrou em regime pelos
eufemismos.
Fui
quebrar o protocolo de Kyoto na Lancheria Café da Manhã, cansado de
me negar delícias. Repeti minha infância: um pote de liquidificador
cheio de suco de morango e pastel de carne tamanho folha almaço.
Fazia
tanto tempo que não comia um pastel que exagerei na pressa e mordi
sem ao menos testar a temperatura do recheio — era a ânsia do
apaixonado que não coordena os movimentos simultâneos da língua,
dos dentes e dos lábios.
O
vapor queimou minha bochecha direita. Um tufão quente clareou os
pelos da barba.
Ganhei
um letreiro de idiota no rosto, um vergão ridículo. Parecia marca
de batom, não foram poucas as pessoas que buscaram limpar e me
proteger da crise conjugal.
Ao
voltar para casa, Cínthya não esperou que eu colocasse a pasta no
chão:
— O
que é isso?
— O
quê?
Eu
me fiz de desentendido porque lembrei que não poderia contar a
verdade para ela. Para ela não. Para os outros, não havia problema,
mas para ela, médica, que me cuida e que me ama, enfurecida com meu
colesterol, não tinha jeito.
— Como não sabe? Parece uma mordaça…
— Hein?
— Um
arranhão de mulher?
— Não,
tá brincando, né?
Com
objetivo de proteger uma pequena mentira o homem afunda numa
tragédia. Não existe pequena mentira, toda mentira é uma omissão
que depende de novos detalhes e vai corrompendo o arquivo rígido e
contamina a memória desde o nascimento.
A
mentira cresce a tal ponto que não existirá forma de recuperar o
início. E deixará de fazer amizades para recrutar cúmplices e
álibis.
A
dificuldade de expor uma vergonha facilmente perdoável, um pecado
comum, nos faz amargar a condenação capital de um crime. Os
constrangimentos simples, não os grandes, sempre nos conduzem à
pena de morte.
— É
obra de uma vadia?
— Não,
não…
— É
herpes?
Quando
ela mencionou herpes, percebi que o colesterol não é nada perto do
ciúme, então gritei:
— Eu
me queimei com um pastel. Foi um pastel, foi um pastel!
Fabrício
Carpinejar, in Ai
meu Deus, ai meu Jesus
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