sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Pastelão

Eu falei que meu colesterol está alto, muito alto? 270! Agora terei que esperar três meses para um novo exame e finalmente escapar da vigilância secreta de minha mulher.
Por enquanto, sofro por antecipação. Aprendi que “prevenção” é somente antecipar o sofrimento. Sofre-se mais. Sofre-se antes de se ter feito qualquer coisa.
Vem funcionando. Fui beliscar uma torta de pera e já vejo as sobrancelhas arqueadas de Cínthya reprimindo a crosta de massa podre; e ela nem estava comigo naquele momento.
Repare que disse “beliscar”. Descobrimos quem entrou em regime pelos eufemismos.
Fui quebrar o protocolo de Kyoto na Lancheria Café da Manhã, cansado de me negar delícias. Repeti minha infância: um pote de liquidificador cheio de suco de morango e pastel de carne tamanho folha almaço.
Fazia tanto tempo que não comia um pastel que exagerei na pressa e mordi sem ao menos testar a temperatura do recheio — era a ânsia do apaixonado que não coordena os movimentos simultâneos da língua, dos dentes e dos lábios.
O vapor queimou minha bochecha direita. Um tufão quente clareou os pelos da barba.
Ganhei um letreiro de idiota no rosto, um vergão ridículo. Parecia marca de batom, não foram poucas as pessoas que buscaram limpar e me proteger da crise conjugal.
Ao voltar para casa, Cínthya não esperou que eu colocasse a pasta no chão:
O que é isso?
O quê?
Eu me fiz de desentendido porque lembrei que não poderia contar a verdade para ela. Para ela não. Para os outros, não havia problema, mas para ela, médica, que me cuida e que me ama, enfurecida com meu colesterol, não tinha jeito. 
— Como não sabe? Parece uma mordaça…
Hein?
Um arranhão de mulher?
Não, tá brincando, né?
Com objetivo de proteger uma pequena mentira o homem afunda numa tragédia. Não existe pequena mentira, toda mentira é uma omissão que depende de novos detalhes e vai corrompendo o arquivo rígido e contamina a memória desde o nascimento.
A mentira cresce a tal ponto que não existirá forma de recuperar o início. E deixará de fazer amizades para recrutar cúmplices e álibis.
A dificuldade de expor uma vergonha facilmente perdoável, um pecado comum, nos faz amargar a condenação capital de um crime. Os constrangimentos simples, não os grandes, sempre nos conduzem à pena de morte.
É obra de uma vadia?
Não, não…
É herpes?
Quando ela mencionou herpes, percebi que o colesterol não é nada perto do ciúme, então gritei:
Eu me queimei com um pastel. Foi um pastel, foi um pastel!
Fabrício Carpinejar, in Ai meu Deus, ai meu Jesus

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