A
vida é uma teia tecendo a aranha. Que o bicho se acredite caçador
em casa legítima pouco importa. No inverso instante, ele se torna
cativo em alheia armadilha. Confirma-se nesta estória sucedida em
virtuais e miúdas paragens.
Era
o Benjamim Katikeze. Desde pequeno ele se dedicara a ausências,
paralelo ao céu. Os outros brincavam, festejando os ínfimos nadas
da infância. Só o Benjamim definhava na catequese, entre santos e
incenso. Mesmo os pais, que lhe queriam composto e ordeiro, achavam
que era por demasia.
—
Vai
brincar, Ben. Aproveita ser criança.
Mas
o Benjamim, inaudiente, se desmeninava. O corpo madurava, idades
além. As noites desfilavam e faziam-se côncavas para proveito de
rapazes e raparigas. Só as mãos do mencionado se mantinham juntas,
coladas, imaculadas. O Ben seguia mais alto que as almas.
Até
que um dia apareceu Anabela, anabelíssima. Era uma rebuçada, capaz
de publicar desejos nos mais pacatos olhos. Anabela apaixonou-se por
Benjamim. O pobre nem com isso: ao contrário, mais ainda se
internava em habilidades de kongolote. A menina enviou bilhetes,
mensagens mais suspiradas que rabiscadas. Na presença dele, Anabela
se desembrulhava. Mas sempre é assim: quando há o trecho, falta o
apetrecho. E para mulher atiradiça, homem recatadiço. Ponha-se os
iis nos pontos. Respective-se.
O
bairro, nos enquantos, entretinha suas mil bocas com o romance
desencontrado. No bar vizinho se comentava:
—
Mulheres?
Quanto mais gingam o corpo mais fecham o coração.
—
Eu
sei o que ela quer: é taco, carteira gorda. Afinal, boa e de graça
só mesmo a chuva.
—
Não,
não é caso de dinheiro. Se o próprio Henrique, mulato igual como
ela, foi negado na proposta de anelamento.
Dissessem.
A verdade era só uma: Anabela, por todos desejada, queria-se só com
Benjamim. Contudo, ele seguia seus votos, resumido. Queria entrar no
Seminário, estudar padreologia. Na espera, o seu único empenho era
a oração. Ben era bastante orativo.
Os
ataques de Anabela se fizeram mais cerrados. Parecia que quanto mais
inviável mais ela nele se fincava. Ou quem sabe a vontade se nutre
de impossíveis? Anabela passou a visitá-lo em horas desocultadas.
Muitos lhe viram sair de casa do Benjamim suprarreptícia,
atrevivida.
A
rapariga parecia querer o escândalo. Mesmo ao pronunciar o nome
dele, ela se deslizava: “Benjamim: beija a mim?”. As gentes
sussurravam. Até quando o rapaz se aguentaria, beato repelindo o
ato?
—
Não
aguenta. Algum homem é inoxidável?
Mas
as aparências são maiores que as sucedências. E o real espanto: a
barriga da Anabela desatou a crescer. Anabela, a Anabela.
O
pai dela, o respeitoso Juvenal, tomou então honrosas profilaxias.
Afinal, todos sabiam: o Juvenal era um homem muito destremido.
Esperavam-se as consequências. O dedo na campainha da casa de
Benjamim anunciou a tempestade:
—
Senhor
Benjamim?
—
O
próprio.
—
Venho
saber da data.
—
Qual
data?
—
A
data do casamento.
—
Casamento?
De quem?
—
Do
seu, senhor Benjamim. Do seu casamento com a minha filha Anabela.
A
mandioca já azedava. O Ben passava a estrangeiro em sua própria
casa. Cidadão em apuros de sobrevivência, ainda malbuciou. Mas o
outro:
—
É
seminarista? E depois? Conheço-lhes: são os piores!
O
Juvenal, sogro em véspera de tomada de posse, não aceitava
argumentiras: o nascente era indubitável, legítimo e incondicional.
E, assim, o homem foi-se, deixando Benjamim à porta da noite.
Estava-lhe o pensamento desmemoriado, sem palavra. Afinal, nenhuma
tristeza pode ser explicada. Porque é ferida para além do corpo,
dor para lá do sentimento. E a angústia do Benjamim era inundação
cobrindo tudo. Ele se adivinhava sob a toalha do escuro, como se a
vida e a morte lhe fossem simétricas. Só por causa de um engano,
todo o seu sonho havia sido anulado. Já não seria padre, sua única
aspiração. E teria que casar com alguém
que só lhe inspirava aflição. Sem socorro terreno, Benjamim rezava
com tanta fervura que todas as calças se romperam nos joelhos. Mesmo
as do fato de casamento tiveram de ser costuradas.
Casaram-se
irremediavelmente. Anabela e Benjamim e vice-versa. Com eles se
matrimoniaram as famílias, cruzando-se nomes e destinos. E os dois
passaram a entreviver-se, mútuas testemunhas de suas intimidades. O
dia-a-noite era um impossível entendimento. Ele, virginoso, só dava
ocupação às rótulas, nos sucessivos joelhamentos. Ela sempre
querendo bailações, distratividades.
E,
afinal, a grávida dela não se consumou. Não que houvesse aborto ou
esvazamento. Nada não houve. Anabela desbarrigou-se por mistério.
Benjamim não fez pergunta: melhor seria o ignorantismo. E, assim.
Anabela,
entretanto, cansou de usar suas belezas sem que Ben exercesse
másculas funções. Decidiu-se então a consultar o vizinho, um
idoso enfermeiro reformado, de nome Bila.
—
Que
passa, vizinhinha?
Ela
respondeu que era assunto muito interior, o vizinho convidou a que
entrasse. Anabela ocupou escasso assento, embaraçada. Passou os
olhos desconfiados pela sala:
—
Desculpa,
senhor enfermeiro. Mas ainda não encontrei parede surda.
O
enfermeiro sorriu com beneficência, aquietando a moça. Ela que
falasse à vontade: eram paredes da máxima confiança. Anabela
confessou o motivo de suas infelicidades: o pseudo-Benjamim. O velho
escutou palavras, lágrimas, suspiros. No fim, fez a síntese:
—
Quer
dizer, ele maridou-lhe mas não exerce a soberania.
Ela
gostou do resumo mas já não concordou com próximo julgamento dele.
—
É
uma coisa que se vê, Anabela. Vê-se que não é uma esposa
completa. Você anda sempre cabisbaixinha.
Ela
fez um sinal tentando interromper mas o Bila prosseguiu: “Me
admira, o Ben, tão cheio de corpo”. E depois riu-se: “É como o
saco de carvão, parece corpulento mas não se sustenta em pé”.
—
Não
é isso que o senhor pensa. Só gostava que o senhor ajudasse o pobre
Ben.
—
Desculpa,
Anabela, mas não dá.
Ele
divulgou suas limitações: como enfermeiro nada sabia, como vizinho
menos ainda podia.
—
Essas
coisas não são competência de hospital.
Bila
levantou-se. Puxou de um lenço e limpou o rosto. Depois, foi à
janela e espreitou para nada. Acomodou-se dentro do casaco antes de
falar.
—
A
cura desses males só encontra-se na tradição. Mas vocês, da
cidade, já começam a negar…
—
Eu
não nego nada. O Ben é que nunca iria aceitar, por causa da
religião.
—
Mas,
o quê? Amar a mulher respectiva é contra alguma religião?
—
Não,
mas isso de feitiço…
—
Deixa
o assunto comigo, Anabela. Eu convenço o Ben, já lhe conheço há
muito tempo.
O
enfermeiro explicou os procedimentos: o marido em apuros começaria
por se banhar numa água de raízes.
—
É
para lavar o chissila dele?
Anabela
duvidou, queria os detalhes. Chissila? Sim, era a origem daquela má
sorte do marido. As raízes lavariam o pobre Ben do mau-olhado.
Depois, prosseguiu Bila, seguir-se-ia a vacina.
—
Então
aí já entra o senhor enfermeiro, como tal.
O
vizinho negou. Era uma vacina tradicional, feita de poeiras do fogo,
cinzas de osso de leão.
—
Leão? Onde se encontra leões num
tempo destes?
—
São leões antigos, coloniais.
Qualidade garantida.
Quem
aplicaria a vacina seria uma velha feiticeira que ele conhecia, de
artes capazes de inflamar de paixão um morro-de-muchém. Até
cooperantes lhe iam consultar. A feiticeira, dizia o vizinho, era
várias vezes internacional. Mas o Benjamim teria que se transferir,
com alma e bagagem, para a residência da feiticeira.
—
Um
curso de capacitação, como dizem por aí.
O
teste final de aprovação seria feito com a própria velha. Se o
Benjamim ficasse apurado, nunca mais desperdiçaria oportunidade com
a formosa Anabela.
—
Dormir
com a velha, o meu Benjamim?
Não
havia alternativa, disse o enfermeiro. Feridas da boca curam-se com a
própria saliva. Ela argumentou os seus receios:
—
Ouvi
dizer que há homens que só conseguem com velhas, essas de idade
avançadíssima. Com as jovens desconseguem.
Anabela
voltou a casa cheia de dúvidas. Um pesadelo a perseguiu muitas
noites. Sonhava que, ao adormecer, virava velha, coberta de rugas e
escamas. Ela envelhecia no imediato momento em que tombava no sono. O
marido desconhecia essas mudanças, ora bela, ora monstro. Certa vez,
porém, o sonho se desenrolou assim: depois de cumprirem amores ela
adormeceu enquanto ele a contemplava com paixão. Então, perante os
olhos dele se deu a espantosa transfiguração. A pele lisa se
encarquilhou, o corpo fresco se antiquou. Ele ficou atónito, capaz
de desexistir. Foi ao vizinho, consultou o Bila.
—
Preciso
de que um feiticeiro anule o feitiço que pesa sobre Anabela.
O
Bila respondeu-lhe com uma pergunta: como sabia ele se Anabela não
era, de fato, uma velha que se fazia jovem durante o dia?
—
E
que diferença faz?
—
Faz
muita, Ben. Se a sua mulher for essa que você viu adormecida, então
você ficará com uma velha rugosa para toda a vida.
—
Mas
eu quero desfazer o cushe-cushe.
—
Está
bem. Mas depois não diga que não lhe avisei.
Ainda
no sonho, Anabela se via a despertar numa manhã brumosa. Olhando-se
ao espelho ela se descobria engelhada, parecia defunta arrependida.
Sacudia o espelho até ver o seu rosto estilhaçar-se. Mas em cada
pedaço de vidro ela se confirmava tresenrugada. Lavava-se com água
tépida, alisava-se com cremes de ervas. Nada, as rugas teimavam,
invencíveis. E quando tentava sair do quarto, as pernas,
entorpecidas, lhe fugiam.
Anabela
acordava do pesadelo, coberta de suores. Corria ao espelho para
certificar o seu aspecto. O espelho devolvia-a lisa e polida. Ela
suspirava no consolo da realidade.
Os
maus sonhos continuaram mesmo depois de Benjamim ter partido para
casa da feiticeira. Anabela não conseguia imaginar que argumentos
teria usado o enfermeiro para convencer o marido. Mas, a verdade é
que o Benjamim arrumou uma pequena mala e, sem dizer palavra, se
ausentou. Ficou três semanas na cura. Anabela contou os dias nos
dedos do desespero. Voltaria normal? Ou traria novos hábitos do
convívio com a velha? Finalmente, ele chegou. Anabela ficou de olhos
cheios, sem nada perguntar. Benjamim estava pálido, mais
transtornado que retornado. Sentou-se na cama e olhou longamente a
esposa. Ela interrogava aquela pose dele. Que alma estaria por detrás
daquele homem?
Ficaram
calados por um tempo. Ben fez um sinal para que ela se aproximasse.
Anabela ergueu-se, sentindo já o vulcão do desejo lhe inundando.
Ajoelhou-se em frente do marido:
—
É o
quê, Ben?
O
braço dele vagueou, bêbado, perto dos seus seios. Ela sorriu,
fez-se mais próxima. Benjamim murmurou qualquer coisa, parecia mais
suspiro que palavra. O arrepio de uma mão invisível estremeceu a
jovem esposa.
—
Eu
quero
— disse ele.
Ela
começou a desbotoar-se, parecia que o vestido tremia sob os dedos.
Sentou-se mais junto dele, à espera. Um novo murmúrio escapou dos
lábios de Benjamim:
—
Eu
quero…
—
Eu
também.
—
Eu
quero água. Dá-me água, Anabela.
Um
fundo desânimo lhe percorreu a carne. Ficou parada, entre o
descrédito e a frustração. No enquanto da sua demora, Benjamim se
levantou bruscamente. Porém, antes de dar um passo, tonteou no ar e
caiu pesadamente no chão com menos consistência que um tapete.
Levaram-no,
deitaram-no, tentaram em vão despertá-lo. Mas o Benjamim
mantinha-se para lá das pálpebras: respirareava. Anabela chorava o
marido em estado vegetal, falando-lhe com doçura como se ele ainda a
ouvisse. Passava as noites em claro, atenta ao ser deitado a seu
lado.
Os
tempos trespassaram. Uma noite, já a Lua se hasteara, Anabela
adormeceu, vencida pelo cansaço. No meio do sono, contudo, ela
sentiu um arrepio como se alguém lhe tocasse. Ficou imovente,
esperante. Não havia dúvida: eram mãos em artifícios de ternura.
Agora lhe envolviam a cintura e lhe enchiam de uma quentura que há
muito desperdiçava em suspiros. Ela acelerou o sangue: quem seria o
autor daquelas apetências? O Benjamim? Não, não podia ser ele. Se
ele nunca ousara, mesmo antes do acidente. Então, ela se fingiu
dormida e o anônimo
amante se espelhou em seu corpo, mar e praia se entreencheram. De
olhos sempre fechados, ela recebeu o intruso, esse gatuno da sua
triste solidão. Por noites, se repetiu o encontro cego. De pálpebras
descidas, ela recebia o estranho. Amavam-se em fúria mas em
silêncio. Ela receava que o Benjamim despertasse e surpreendesse o
desconhecido. E foram madrugadas cumpridas aos gemidos, suspiros
fundos de quem perde o ser.
Até
que um dia, o enfermeiro Bila, na sua visita diária ao enfermo,
anunciou:
—
Benjamim
já estremexe os dedos. Amanhã, acorda todo, completo.
Foram
palmas, risadas. Todos festejaram. Todos menos Anabela. A sua
exdiferença foi notada pela sograria. A mãe, salvando aparências:
—
Coitada.
Ela está tão gasta que já nem reage.
A
jovem esposa, realmente, assumira o rosto cínzeo das viúvas. E, ao
acompanhar as visitas à porta, se via que ela continha o desabar de
uma lágrima. O enfermeiro, preocupado, chamou-lhe à parte:
—
Que
tens, Anabela? Não se sente boa?
Ela
não se devolveu. Baixou o rosto, rompeu-se o dique da sua íntima
amargura. Aceitou o lenço e arrumou o aspecto. Corrigiu-se, a voz
tremeluzindo:
—
Não
pode deixar ele dormente mais uns dias? Só mais uns dias?
O
enfermeiro admirou-se, soerguendo a cabeça. Ela traduziu-se:
—
É
que queria ficar mais um tempo com ele. Queria tanto, senhor
enfermeiro.
—
Com
ele, quem?
E,
de novo, lágrimas. O vizinho, de perplexa anuência, mais padre que
enfermeiro. Acreditando ter recebido a confissão de um desjuízo,
tranquilizou a jovem esposa:
—
Está
certo, minha filha. Eu entendo muito bem: você é tão bonita, tão
pretendida. Como é que se podia guardar tantíssimo tempo?
E
dirigiram-se os dois para o quarto do vivibundo. Enquanto o
enfermeiro preparava as seringas, ela se debruçou sobre o marido.
Talvez só ele, o retirado Benjamim, tenha escutado o segredo que ela
lhe entregou. Pelo menos, o enfermeiro surpreendeu qualquer coisa
como um sorriso no canto da boca de Benjamim. E, sorrindo também
ele, lhe injeccionou novas dormências.
Mia
Couto,
in Cada
homem é uma raça
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