O
dono do pequeno restaurante é amável, sem derrame, e a fregueses
mais antigos costuma oferecer, antes do menu, o jornal do dia
“facilitado”, isto é, com traços vermelhos cercando as notícias
importantes. Vez por outra, indaga se a comida está boa, oferece
cigarrinho, queixa-se do resfriado crônico e pergunta pelo nosso, se
o temos; se não temos, por aquele regime começado em janeiro, e de
que desistimos. Também pelos filmes de espionagem, que mexem com ele
na alma.
Espetar
a despesa não tem problema, em dia de barra pesada. Chega a
descontar o cheque a ser recebido no mês que vem (“Falta só uma
semana, seu Adelino”).
Além
dessas delícias raras, seu Adelino faculta ao cliente dar palpites
ao cozinheiro e beneficiar-se com o filé mais fresquinho, o palmito
de primeira, a batata feita na hora, especialmente para os eleitos.
Enfim, autêntico papo-firme.
Uma
noite dessas, o movimento era pequeno, seu Adelino veio sentar-se ao
lado da antiga freguesa. Era hora do jantar dele, também. O garçom
estendeu-lhe o menu e esperou. Seu Adelino, calado, olhava para a
lista inexpressiva dos pratos do dia. A inspiração não vinha. O
garçom já tinha ido e voltado duas vezes, e nada. A freguesa
resolveu colaborar:
— Que
tal um fígado acebolado?
—
Acabou, madame — atalhou o garçom.
— Deixe
ver… Assada com coradas, está bem?
— Não,
não tenho vontade disso — e seu Adelino sacudiu a cabeça.
— Bem,
estou vendo aqui umas costeletas de porco com feijão-branco, farofa
e arroz…
— Não
é mau, mas acontece que ainda ontem comi uma carnezita de porco, e
há dois dias que me servem feijão ao almoço — ponderou.
A
freguesa de boa vontade virou-se para o garçom:
— Aqui
no menu não tem, mas quem sabe se há um bacalhau a qualquer coisa?
— pois
seu Adelino (refletiu ela) é português, e como todo lusíada que se
preza, há de achar isso a pedida.
Da
cozinha veio a informação:
— Tem
bacalhau à Gomes de Sá. Quer?
— É,
pode ser isso — concordou seu Adelino, sem entusiasmo.
Ao
cabo de dez minutos, veio o garçom brandindo o Gomes de Sá. A
freguesa olhou o prato, invejando-o, e, para estimular o apetite de
seu Adelino:
— Está
uma beleza!
— Não
acho muito não — retorquiu, inapetente.
O
prato foi servido, o azeite adicionado, e seu Adelino traçou o
bacalhau, depois de lhe ser desejado bom apetite. Em silêncio.
Vendo
que ele não se manifestava, sua leal conviva interpelou-o:
— Como
é, está bom?
Com
um risinho meio de banda, fez a crítica:
— Bom
nada, madame. Isso não é bacalhau à Gomes de Sá nem aqui nem em
Macau. É bacalhau com batatas. E vou lhe dizer: está mais para sem
gosto do que com ele. A batata me sabe a insossa, e o bacalhau
salgado em demasia, ai!
A
cliente se lembrou, com saudade vera, daquele maravilhoso Gomes de Sá
que se come em casa de d. Concessa. E foi detalhando:
— Lá
em casa é que se prepara um legal, sabe? Muito tomate, pimentão,
azeite de verdade, para fazer um molho pra lá de bom, e ainda
acrescentam um ovo…
Seu
Adelino emergiu da apatia, comoveu-se, os olhos brilhando, desta vez
em sorriso aberto:
— Isso
mesmo! Ovo cozido e ralado, azeitonas portuguesas, daquelas… Um
santo, santíssimo prato!
Mas,
encarando o concreto:
— Essa
gente aqui não tem a ciência, não tem a ciência!
—
Espera aí, seu Adelino, vamos ver no
jornal se tem um bom filme de espionagem para o senhor se consolar.
Não
tinha, infelizmente.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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