O
seu tempo está próximo a vir, e os seus dias não se alongarão.
(Isaías,
XIII, 22)
1
No terceiro dia em que dormia no pequeno apartamento de um edifício
recém-construído, ouviu os primeiros ruídos. De normal, tinha o
sono pesado e mesmo depois de despertar levava tempo para se integrar
no novo dia, confundindo restos de sonho com fragmentos da realidade.
Por isso não deu de imediato importância à vibração de vidros,
atribuindo-a a um pesadelo. A escuridão do aposento contribuía para
fortalecer essa frágil certeza. O barulho era intenso. Vinha dos
pavimentos superiores e assemelhava-se aos produzidos pelas
raspadeiras de assoalho. Acendeu a luz e consultou o relógio: três
horas. Achou estranho. As normas do condomínio não permitiam
trabalho dessa natureza em plena madrugada. Mas a máquina prosseguia
na impiedosa tarefa, os sons se avolumando, e crescendo a irritação
de Gérion contra a companhia imobiliária que lhe garantira ser
excelente a administração do prédio. De repente emudeceram os
ruídos.
Pegara
novamente no sono e sonhou que estava sendo serrado na altura do
tórax. Acordou em pânico: uma poderosa serra exercitava os seus
dentes nos andares de cima, cortando material de grande resistência,
que se estilhaçava ao desintegrar-se.
Ouvia,
a espaços, explosões secas, a movimentação de uma nervosa
britadeira, o martelar compassado de um pilão bate-estaca. Estariam
construindo ou destruindo?
Do
temor à curiosidade, hesitou entre verificar o que estava
acontecendo ou juntar os objetos de maior valor e dar o fora antes do
desabamento final. Preferiu correr o risco a voltar para sua casa,
que abandonara, às pressas, por motivos de ordem familiar.
Vestiu-se, olhou a rua, através da vidraça tremente, na manhã
ensolarada, pensando se ainda veria outras.
Mal
abrira a porta, chegou-lhe ao ouvido o matraquear de várias brocas e
pouco depois estalos de cabos de aço se rompendo, o elevador
despencando aos trambolhões pelo poço até arrebentar lá embaixo
com uma violência que fez tremer o prédio inteiro.
Recuou
apavorado, trancando-se no apartamento, o coração a bater
desordenadamente. — É o fim, pensou. — Entretanto, o silêncio
quase que se recompôs, ouvindo-se ao longe apenas estalidos
intermitentes, o rascar irritante de metais e concreto.
Pela
tarde, a calma retornou ao edifício, encorajando Gérion a ir ao
terraço para averiguar a extensão dos estragos. Encontrou-se a céu
aberto. Quatro pavimentos haviam desaparecido, como se cortados
meticulosamente, limadas as pontas dos vergalhões, serradas as
vigas, trituradas as lajes. Tudo reduzido a fino pó amontoado nos
cantos. Não via rastros das máquinas. Talvez já estivessem
distantes, transferidas a outra construção, concluiu aliviado.
Descia tranquilo as escadas, a assoviar uma música em voga, quando
sofreu o impacto da decepção: dos andares inferiores lhe chegava
toda a gama de ruídos que ouvira no decorrer do dia.
2
Ligou para a portaria. Tinha pouca esperança de receber
esclarecimentos satisfatórios sobre o que estava ocorrendo. O
próprio síndico atendeu-o:
— Obras
de rotina. Pedimos-lhe desculpas, principalmente sendo o senhor nosso
único inquilino. Até agora, é claro.
— Que
raio de rotina é essa de arrasar o prédio todo?
—
Dentro
de três dias estará tudo acabado — disse, desligando o aparelho.
— Tudo
acabado. Bolas. — Encaminhou-se à minúscula cozinha, boa parte
dela tomada por latas vazias. Preparou sem entusiasmo o jantar,
enfarado de conservas.
Sobreviveria
às latas? — Olhava melancólico o estoque de alimentos, feito para
durar uma semana.
O
telefone tocou. Largou o prato, intrigado com a chamada. Ninguém
sabia do seu novo endereço. Inscrevera-se na Companhia Telefônica e
alugara o apartamento com nome suposto. Um engano, certamente.
Era
a mulher, a lhe aumentar o desânimo:
— Como
me descobriu? — Ouviu uma risadinha do outro lado da linha. (A
gorda devia estar comendo bombons. Tinha sempre alguns ao alcance das
mãos.)
— Por
que nos abandonou, Gérion? Venha para casa. Você não viverá sem o
meu dinheiro. Quem lhe arranjará emprego? (A essa altura Margarerbe
já estaria lambendo os dedos lambuzados de chocolate ou limpando-os
no roupão estampado de vermelho, sua cor predileta. A porca.)
— Vá
para o diabo. Você, seu dinheiro, sua gordura.
3
Desligara-se momentaneamente dos ruídos, imerso na desesperança.
Buscou no bolso um cigarro e verificou com desagrado que tinha
poucos. Esquecera de fazer maior provisão de maços. Mandou o nome
da mãe.
A
mão pousada no fone, colocado no gancho, Gérion fez uma careta ao
ouvir de novo o toque da campainha.
—
Papai?
Abriu-se
num sorriso triste:
—
Filhinha.
— Você
bem poderia voltar, ler para mim aquele livro do cavalo verde.
A
parte decorada terminara e Seateia começava a gaguejar:
—
Pai...
A gente gostaria que viesse, mas sei que você não quer. Não venha,
se aí é melhor...
A
ligação foi interrompida bruscamente. De início suspeitara e logo
se convenceu de que a filha fora obrigada a lhe telefonar, numa
tentativa de explorá-lo emocionalmente. Àquela hora estaria
apanhando por não ter obedecido à risca as instruções da mãe.
Nauseado,
lamentava o fracasso da fuga. Tornaria a partilhar do mesmo leito com
a esposa, espremido, o corpo dela a ocupar dois terços da cama. O
ronco, os flatos.
Mas
não poderia deixar que fosse transferido a Seateia o ódio que
Margarerbe lhe dedicava. Recorreria a todas as formas de tortura para
vingar-se dele, através da filha.
4
Os ruídos tinham perdido a força inicial. Diminuíam, cessaram por
completo.
5
Gérion descia a escadaria indeciso quanto à necessidade do
sacrifício.
Oito
andares abaixo, a escada terminou abruptamente. Um pé solto no
espaço, retrocedeu transido de medo, caindo para trás. Transpirava,
as pernas tremiam.
Não
conseguia levantar-se, pregado ao degrau.
Foi
demorada a recuperação. Passada a vertigem, viu embaixo o terreno
limpo, nem parecendo ter abrigado antes uma construção. Nenhum
sinal de estacas, pedaços de ferro, tijolos, apenas o pó fino
amontoado nos cantos do lote.
Voltou
ao apartamento ainda sob o abalo do susto. Deixou-se cair no sofá.
Impedido de regressar a casa, experimentou o gosto da plena solidão.
Sabia do seu egoísmo, omitindo-se dos problemas futuros da filha.
Talvez a estimasse pela obrigação natural que têm os pais de amar
os filhos.
Gostara
de alguém? — Desviou o curso do pensamento, fórmula cômoda de
escapar à vigilância da consciência.
Aguardava
paciente nova chamada da mulher e, ao atendê-la, ia nos seus olhos
um sádico prazer. Há longo tempo vinha aguardando essa
oportunidade, para revidar duro as humilhações acumuladas e
vingar-se da permanente submissão a que era constrangido pelos
caprichos de Margarerbe, a lhe chamar, a toda hora e na presença dos
criados, de parasita, incapaz.
Escolhera
bem os adjetivos. Não chegou a usá-los: uma corrente luminosa
destruiu o fio telefônico. No ar pairou durante segundos uma poeira
colorida. Fechava-se o bloqueio.
6
Depois de algumas horas de absoluto silêncio, ela volvia: ruidosa,
mansamente, surda, suave, estridente, monocórdia, dissonante,
polifônica, ritmadamente, melodiosa, quase música. Embalou-se numa
valsa dançada há vários anos. Sons ásperos espantaram a imagem
vinda da adolescência, logo sobreposta pela de Margarerbe, que ele
mesmo espantou.
Acordou
tarde da noite com um grito terrível a ressoar pelos corredores do
prédio. Imobilizou-se na cama, em agônica espera: emitiria a
máquina vozes humanas? — Preferiu acreditar que sonhara, pois de
real só ouvia o barulho monótono de uma escavadeira a cumprir
tarefas em pavimentos bem próximos do seu.
Tranquilizado,
analisava as ocorrências dos dias anteriores, concluindo que pelo
menos os ruídos vinham espaçados e não lhe feriam os nervos com o
serrar de ferros e madeira. Caprichosos e irregulares, eles mudavam
rapidamente de andar, desnorteando Gérion quanto aos objetivos da
máquina. — Por que uma e não várias, a exercer funções
diversas e autônomas, como inicialmente acreditou? — A crença na
sua unidade entranhara-se nele sem aparente explicação, porém
irredutível. Sim, única e múltipla na sua ação.
7
Os ruídos se avizinhavam. Adquiriam brandura e constância,
fazendo-o acreditar que em breve encheriam o apartamento.
Abeirava-se
o momento crucial e custava-lhe conter o impulso de ir ao encontro da
máquina, que perdera muito do antigo vigor ou realizava seu trabalho
com propositada morosidade, aprimorando a obra, para fruir aos poucos
os instantes finais da destruição.
A
par do desejo de enfrentá-la, descobrir os segredos que a tornavam
tão poderosa, tinha medo do encontro. Enredava-se, entretanto, em
seu fascínio, apurando o ouvido para captar os sons que àquela hora
se agrupavam em escala cromática no corredor, enquanto na sala
penetravam os primeiros focos de luz.
Não
resistindo à expectativa, abriu a porta. Houve uma súbita ruptura
na escalada dos ruídos e escutou ainda o eco dos estalidos a
desaparecerem céleres pela escada. Nos cantos da parede começava a
acumular-se um pó cinzento e fino.
Repetiu
a experiência, mas a máquina persistia em se esconder, não sabendo
ele se por simples pudor ou se porque ainda era cedo para mostrar-se,
desnudando seu mistério.
No
ir e vir da destruidora, as suas constantes fugas redobravam a
curiosidade de Gérion, que não suportava a espera, a temer que ela
tardasse em aniquilá-lo ou jamais o destruísse.
Pelas
frinchas continuavam a entrar luzes coloridas, formando e desfazendo
no ar um contínuo arco-íris: teria tempo de contemplá-la na
plenitude de suas cores?
Cerrou
a porta com a chave.
Murilo
Rubião,
in Obra completa
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