quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Florencio morreu

O que ela está dizendo, Juan Preciado?
Diz que ela escondia os pés entre as pernas dele. Seus pés gelados como pedras frias e que ali se esquentavam como num forno onde se doura o pão. Diz que ele mordia seus pés dizendo a ela que eram como pão dourado no forno. Que dormia encolhida, metendo-se dentro dele, perdida no nada ao sentir que sua carne se quebrava, que se abria como um sulco aberto por um prego ardoroso, depois morno, depois doce, dando golpes duros contra sua carne macia; mergulhando e mergulhando, até o gemido. Mas que a morte dele tinha doído ainda mais. Isso é o que ela diz.
Ela está se referindo a quem?
A alguém que morreu antes dela, na certa.
Mas quem será?
Não sei. Diz que na noite em que ele demorou a chegar sentiu que havia regressado já noite alta, ou talvez de madrugada. Mal reparou, porque seus pés, que tinham ficado solitários e frios, pareceram envolver-se em alguma coisa; que alguém os envolvia com alguma coisa e lhes dava calor. Quando acordou encontrou-os enrolados num jornal que ela tinha lido, enquanto esperava por ele e que tinha deixado cair no chão quando não aguentou mais de sono. E que lá estavam seus pés enrolados no jornal, quando vieram dizer a ela que ele tinha morrido.
Devem ter quebrado o caixão onde a enterraram, porque dá para ouvir uma espécie de ranger de tábuas.
É mesmo, eu também ouço.

Naquela noite tornaram a suceder-se os sonhos. Por que esse recordar intenso de tantas coisas? Por que não simplesmente a morte e não essa música doce do passado?
Florencio morreu, senhora.
Como aquele homem era comprido! Que alto! E sua voz era dura. Seca como a terra mais seca. E sua figura era borrosa, ou se tornou borrosa depois?, como se entre ela e ele se interpusesse a chuva. “O que tinha dito? Florencio? De que Florencio ela falava? Do meu? Ah!, por que não chorei e me alaguei então em lágrimas para enxugar minha angústia? Senhor, tu não existes! Pedi tua proteção para ele. Que cuidasses dele. Isso eu te pedi. Mas tu só te ocupas das almas. E o que eu quero dele é seu corpo. Nu e quente de amor; fervendo de desejo; amassando o tremor de meus seios e de meus braços. Meu corpo transparente suspenso pelo dele. Meu corpo leve preso e solto às suas forças. O que farei agora com meus lábios sem sua boca para preenchê-los? O que farei de meus lábios doloridos?”
Enquanto Susana San Juan se revolvia inquieta, de pé, ao lado da porta, Pedro Páramo a olhava e contava os segundos daquele novo sonho que já durava muito. O óleo da lamparina faiscava e a chama tornava seu pestanejar cada vez mais débil. Logo se apagaria.
Se pelo menos fosse dor o que ela sentisse, e não esses sonhos sem sossego, esses intermináveis e esgotadores sonhos, ele poderia buscar-lhe algum consolo. Assim pensava Pedro Páramo, os olhos fixos em Susana San Juan, seguindo cada um de seus movimentos. O que aconteceria se ela também se apagasse como se apagou a chama daquela luz débil com a qual ele a via?
Depois saiu fechando a porta sem fazer ruído. Lá fora, o ar limpo da noite descolou de Pedro Páramo a imagem de Susana San Juan.
Ela acordou um pouco antes do amanhecer. Suada. Jogou no chão as cobertas pesadas e se desfez até do calor dos lençóis. Então seu corpo ficou nu, refrescado pelo vento da madrugada. Suspirou e em seguida tornou a adormecer.
Foi assim que horas depois o padre Rentería a encontrou: nua e adormecida.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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