segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Confissões de uma manicure

O que a gente escuta neste salão não convém publicar, meu filho. Mas posso contar umas coisinhas. Às vezes não entendo nada do que falam e me concentro nas cutículas ou na pintura nos cantos de uma unha.
Tem de tudo: unhas delicadas, grossas, maltratadas, roídas, bichadas. E história para todo gosto. Por exemplo, o marido da minha cliente menos avarenta senta num banquinho e lê sempre o mesmo livro: Bucólicas. Um homem sereno, com cara de bode e uma bandeirinha do Brasil espetada na gola da camisa. Que diabo ele tanto admira nessas bucólicas? É verdade que a esposa dele é uma mulher triste, e mais triste ainda quando escolhe um esmalte cor de palha para pintar as unhas. Será o livro uma história da mulher do leitor? Não sei. O que eu sei é que quando acabo meu trabalho ela diz: “Azevedão, espicha a gaita”. Estranho: Azevedão não é grande nem grandioso, a voz dele é mais fina que a de uma menina mimada. O fato é que o Azevedão das Bucólicas me dá uma gorjeta que garante o sorvete do meu filho. As outras mulheres vêm sozinhas, mas todas leem revistas de fotos e fofocas de famosos, nenhuma lê Bucólicas; aliás, nenhuma é triste, ninguém abre um livro neste salão de beleza. E se fosse só de beleza… Falo sério: aqui sobra feiura, sobra tanta coisa, nem te conto. Todas querem ter mãos lindas, mas o tempo é cruel, meu filho. Às vezes me espanto quando vejo um anelão de ouro num dedo de bruxa e, quando olho a cara da mulher, penso: como é que esse diabo casou? E eu, como é que eu me juntei com um safado que logo me largou e trocou por outra? Aí penso nas unhas que limpo e pinto, e digo para mim mesma: eu faço a mão dessas mulheres, e o que essas mãos fazem? Trabalham? Lavam roupa e louça? Contam dinheiro? Fazem sexo? Quer dizer, ajudam a fazer sexo?
Essas mãos traem?
E como! Ouvi cada história de unhas traidoras, unhas pintadas por mim, dezenas de mãos adúlteras. Cansei de ouvir nome de hotel, nome de motel, nome de amante. Uma dessas mãos me disse: “Ericleuza, minha querida, será que ele vai gostar das minhas unhas roxas?”.
Eu conhecia o marido dela, um senhor alinhado, magro que nem caniço, mais paciente do que um chinês. Mas não era chinês, era brasileiro mesmo, coitado.
O doutor? Unhas roxas? Não sei. Talvez não.”
Ela deu uma gargalhada: “O doutor não olha para as minhas mãos, sua tonta. O outro olha”.
E eu não sabia o que dizer, porque não conhecia o outro. Então a madame me disse que ia com o outro toda semana a um motel na Marginal do Tietê, bem depois do presídio. Ela até tirou um cartão da bolsa e me deu: Amor Perdido Amor. Nome esquisito. Por que a palavra amor duas vezes? Perdido por perdido, uma vez não bastava? E a mulher ainda me disse: “Vai lá, minha querida, Amor Perdido Amor é baratinho. E ninguém nos vê”.
Olhei os brilhantes nas mãos dela e pensei: que coroa corajosa! Que mulher ousada! Usa anel de brilhante em São Paulo e ainda frequenta pardieiro.
E os homens que fazem as mãos?
Vaidosos até o tutano, meu filho. Mas como são educados! Colocam as mãos de príncipe no meu regaço. Falam menos do que as mulheres, alguns são mais exigentes, nenhum lê Bucólicas nem se interessa pelas fotos de mulheres nas revistas. Mas ai de mim se meu alicate falhar! Mãos de seda, nunca pegaram pau de enxada, só cabo de guarda-chuva. Quando chove, é um desfile de cabos finos. Eles não falam de motel, acho que são homens fiéis, ou vai ver que nenhum é indiscreto. Eles dizem “Obrigado, Ericleuza”, pagam e vão embora. No mês passado, um deles… Ah, que homem distinto. Lembro que era calado, mas não era carrancudo nem bucólico, só sério. Quando terminei de pintar as unhas dele, reparei nas sobrancelhas. Que olhos, meu filho! Soprou o esmalte com tanta delicadeza que me comoveu. Senti o sopro no meu rosto, um ventinho morno, suave. Aí ele me olhou tanto, e com tanta ternura, que acreditei em alguma coisa: acreditei numa coisa tão linda que meu corpo tremeu, e eu senti aquela quentura…
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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