sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Cipango

No trem da Noroeste, passada Araçatuba, a presença deles começou a aumentar. Era uma silenciosa invasão. Principalmente nos carros de segunda, abundavam seus tipos, indescoráveis amarelos, cabelos ouriçados, caras zigomáticas, virgulados olhos obvexos. Muitos, em geral as mulheres, se sentavam no chão, cruzando as pernas, aos cantos ou pelo corredor, gente que não se acostumava ainda a permanecer em cadeira ou banco. Vinham para Mato Grosso, ou voltavam. Ah, os japões! Parece que se agrupam segundo a procedência: em Araçatuba, são quase todos de Kiu-Shiu, de Kagoshima; de Okinawa, aqui em Campo Grande.
Atraía-nos, de simpatia, visitá-los. Não longe da cidade, por um fundo de vale, seus karichi — terrenos arrendados — se sucediam.
O preto que nos servia de guia até aos Hachimitsu propalava:
Eles guardam numas barricas a comida dos porcos de ceva. É uma mistura de tudo que a gente não sabe, prasapa de boa, cheiro ardido... Porco, fica cada monarca desta altura! Quase do tamanho de burro. E comem deitados...
Mas, chegando lá, não fomos amolar os porcos. Fomos ver as mocinhas, quatro ou cinco, que, numa mesa ao ar livre, a um lado da casa, moíam na máquina arroz cozido, uma massa nevada para fazer bolos. Um de nós se dispôs a fotografá-las, e elas, entre si risonhas, consentiram. Só que apareceu um senhor, seô Hachimitsu que as repreendeu, entremeando a zanga com vênias polidas em nossa intenção. As musmés fugiram para dentro. Ir embora achamos também de tom. Mas, bem nem dadas as costas, e o velho Hachimitsu san vinha chamar-nos, deferentemente. E, sim por mágica, já reapareciam as jovenzinhas niseis, transfloridas: o pai tinha apenas mandado que mudassem de roupas e se enfeitassem, a fim de sair em digno o retrato.
Queria que entrássemos, mas agradecemos, pois lá se achavam trabalhando sisudamente outros japoneses, acabando de construir a casa, no sistema de mutirão.
Mas, antes de partir, espiei pela janela. O que me prendeu os olhos, foi, emoldurado, um desenho de espada — uma dessas velhas espadas japônicas, de ancha lâmina, que um ditado deles diz ser a “alma do samurai” — entre negros ideogramas, tão traçados a pincel. Atrevi-me a perguntar o escrito. E Hachimitsu, curvando-se para o quadro, verteu:
— “O homem que morre pela pátria, vive dez milhões de anos!”
De lá andamos para uma chácara, a “çák’kara”, onde já os espessos grupos de bambus revelavam um intento de afeiçoar o arredor. O mais, era o canavial, labirinto verde. Porém, ao nos aproximarmos da residência, assaltou-nos um cheiro orgânico, ranço inusitado, colorido de componentes. Cheiro de humana fartura.
E eis, ante nós, o chefe da casa, Takeshi Kumoitsuru — rugoso de cara, estanhada, flexo no certo número de mesuras. Cabeça rapada, com topete: cismo-o um sacerdote do xintô ou budista, amigo da raposa branca. Seu sorriso não dissimula um fundo de aspecto apreensivo. Nossas roupas cáqui de excursionistas devem-lhe parecer militares. E ele é esguioso, pescoceia; não gostará que venhamos tirá-lo de qualquer minuto de trabalho seu. Com o ko-tchú — largo cutelo curto — cortava cana para a vaca. E até a vaca vermelha, rosneadora, detida num cercado de bambus, vigiando sua envasada manjedoura, se animalava estranha, diversa, grossa demais, uma búfala.
Planta só cana?
Tudo puranta, esse bom... Tudo puranta, esse bom... Passarinho come...
Muito lucro?
Camíjia comporou, dinhêrio num tem... Camíjia comporou, dinhêrio num tem…
Nem há de estar pobre assim, comerá ao dia seus três arrozes. Temia uma extorsão? Súbito voltou-se em direção à casa, e chamou, com frase comprida, que correu, zarizarizã, como uma palavra só. Surgiram mulher e filha, moça de sorriso fixo, vindo saudar-nos, com aquele xemexe de plenas curvaturas, as mãos nos joelhos.
Entará, senhô, entará... Casa japonês munto suja... — e a mulher ria, um riso desproporcionado.
Entramos para um variado cômodo, que meio a meio seria cozinha e salão. Tudo ali dentro era inesperado e simples, mas de um simples diferente do nosso, desenrolado de velha sabedoria de olhos. As arcas, os armários, as mesas, as esteiras de palha, os utensílios. A mulher empilhava doces alourados, que fabricava para vender. Deles nos ofereceu, dentro de seus risos. O homem piscava atento apenas a todo pio ou esvoaço, lá fora, os pássaros seus adversários. Mas repetia:
Tudo paranta, esse bom... Tudo paranta, esse bom...
Pendente, viu-se uma pele seca de cobra. E o homem figurava mesmo um buda-bonzo, ou xamã monge, ou dês-cá o que seja. Contam que, entre eles, sapos e cobras se dizem de boa sorte. Era?
Eu-pequeno môrde côbura Araçatuba mureu...
Apontou, na parede, o retrato — de um menino japonesinho, o filho, o que a cobra matara — seja a tradução. Ele, a mulher e a filha rapariga calavam-se para o quadro. Sorriam, os três, sorriam-nos, com vinco e afinco. Mas eram também atos tão disciplinadamente de luto, utsu-utsu, que, sem mais, nos fomos.
Num raso pedaço de terreno, verde-verde de todo plantado, luminoso de canaizinhos de irrigação, víamos três pessoas, uma família. Paravam numa paisagem em seda. Até no caminhar dos sulcos d’água no entremeio das miúdas culturas, na separação das poucas árvores mantidas, puderam os Sakamota impor a este chão um torcido toque de arte nipônica — com sua assimetria intencional, recesso de calados espaços inventados e riscos que imóveis guardam qualquer coisa do relâmpago. Mesmo arranjaram um grande arbusto branco, que todo flores. Ao fundo, tlatlavam os quero-queros, sobe-desce-sobe, gritantes. Ou os uns gaviões.
Lá, acolá, de cócoras, o homem trabalha. É moço, bem-parecido; calça curta, sem camisa, chapéu amplo, de palha. Capina em volta das alfaces, isto é, usa seus dedos, para depilar a terra, como se a espiolhasse. Atento, intenso, leva uns segundos: e avança com a mão, pinça um capinzinho, o extrai. Repensa e laboreja, tal um artista de remate, desenhista, bordador. Para mudar de lugar, nem perde tempo em desacocorar-se: só se apruma um meio tanto, e se desloca, andando para trás, para um lado. Pés descalços, pés preênseis, que se seguram no úmido chão. Não nos ouve, não nos vê, nanjo.
A mulher, nada feia, está à beira do rego, com o menino. Lavam e luzem os pimentões, que levarão amanhã à feira, lustram os nabos e abóboras, um por um, esfregando-os com escovas.
Ela se chama — Fumiko, Mitiko, Yukiko, Kimiko, Kazúmi, Natsuko ou Hatsuko? — e com belos dentes. Como foi que se casou com Setsuo Sakamota? Namoraram?
Não, namoro não. Ele quis eu, falou com p’pai. Deu “garantia”...
Garantia em dinheiro? Pagou?
Pâgou, pâgou. Japonês usa...
E gosta dele?
Bom. Munto târâbârâdor. Trâbâra todo dia. Trâbâra noite...
Mas, e o amor?
Amor, sim, munto. Primeiro casa, depois amor vem. Amor, devagarazinho, todo dia amor mais um pouco... Bom...
Simples, bom, viemos, ricos regressamos. Tanto que: — Banzai, banzai, Nippon!
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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