segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O regresso dos heróis nacionais

A urina de um homem sempre cai perto dele.
Provérbio

Camarada Excelência

O obséquio deste relatório é a urgência da situação nesta localidade, no âmbito dos explosivos acontecimentos e dos acontecimentos explosivos. A situação em si é muitíssimo gravíssima, fora do controle das estruturas político-administrativas. Suspeitamos a sabotagem do inimigo, muito-muito para nos desacreditar em face da comunidade mundial. Ainda desconfiei desse padre Muhando. Até esteve, a meu mando, aprisionado. Mas ele não é capaz de nada. Suspeito, sim, de Ana Deusqueira cuja existência tem feito muitas despesas no coração das massas populares. Essa mulher, aliás, merece um parágrafo.
Ela é uma má-vidista, mulher de pronto-pagamento, cujo corpo já foi patrocinado pelo público masculino em geral. Mesmo sobre a minha vida essa cuja Ana já espalhou confusão, criando tristes dicências sobre a minha digna conduta. Esses boatos atravessaram a vila e os bairros de caniço. É verdade, mesmo os caniceiros costumam de comentar-me. É como o Camarada Sua Excelência muito bem diz: os vulgares trazem feridas nas costas, os chefes as trazem na testa. Qual o propositado objetivo dessa Ana? Para mim é vingança. Não esqueçamos que ela foi presa e transferida para um campo de reeducação, aquando da Operação Produção. Ou pode ser um caso comigo, envolvimento mal resolvido. Desses: amor com amor se apaga.
A minha respectiva Ermelinda não para de insistir que eu prenda Ana Deusqueira. Minha esposa dedica muitíssimo ódio à tal mulher. Para ela tudo está claro: a prostituta é que faz acionar os rebentamentos. Que eu sei e que desfaço de contas que não há provas. Todavia, pergunto eu: chego e calabouço-a assim, como se o nosso país fosse terra de direitos desumanos? Ainda por cima com o nariz dessa malta estrangeira por aí a cheirar-nos?
Estou preocupadíssimo, a ponto de panicar. Esse italiano, esse padre, o feiticeiro mais todas essas maltas. O que querem? Onde vão parar? Noutro dia até tive um sonho. Nós fazíamos as cerimônias chamando os nossos heróis do passado. Vieram o Tzunguine, o Madiduane e os outros que combateram os colonos. Sentámos com eles e lhes pedimos para colocar ordem no mundo nossode hoje. Que expulsassem os novos colonos que tanto sofrimento provocavam na nossa gente. Nessa mesma noite acordei com Tzunguine e o Madiduane me sacudindo e me ordenando que me levantasse.
Que estão fazendo, meus heróis?
Você não pediu que expulssássemos os opressores?
Sim, pedi.
Pois então estamos expulsando a si.
A mim!?
A si e aos outros que abusam do Poder.
Viu? Esse foi o sonho, uma vergonha. Pois também o Camarada Excelência entrava nele. Pontapeado, como eu. Os resistentes da nossa gloriosa História chutando-nos fora da História? Mas o mais grave, nesse pesadelo, foi o seguinte: os heróis ameaçaram meu enteado Jonassane que, se ele não devolvesse as terras que ocupava, eles o fariam desaparecer dali. E não é que, no dia seguinte, já fora do sonho, em plena vida real, meu enteado não dava aparecimento? Parece, afinal, que o moço fugiu para o país vizinho. E pior: carregando parte das minhas economias. Isto é obra de forças explicáveis?
E agora, Excelência, me desculpe muitíssimo, mas eu vou-lhe fazer uma autocrítica. Porque, afinal, nós andamos a gritar blasfêmias contra os antepassados. Estou a falar: é que, de outra maneira, não se entende como desataram acontecer coisas que ninguém pode acreditar. Por exemplo, a semana passada um burro-macho deu parto uma criança. Nasceu uma pessoa de pele e pelo, como eu e a Excelência. Ou perdão, nem vale a pena misturar o seu devido nome com assunto de burros e não burros. Contudo, aconteceu, assim mesmo, um bebé nascido de um bicho. E ainda mais estranho: a criança vinha calçada de botas militares. Foi um choque muitíssimo enorme. O jornalista local da rádio, o radiofonista, até queria dar a notícia, mas eu não autorizei. São coisas que dão vergonha em termos de civilização e da democracia. Para não falar do prestígio das gloriosas forças armadas, ali representadas por botas e desatacadores. Bem basta o diz que diz que nos vem dessa porcaria das explosões.
Fui chamado para comprovar a verdade do acontecimento do burro. Mas recusei. Confesso, Excelência: tinha receio. Não medo, receio. E se fosse tudo factualmente autenticada verdade? Como se pode combinar a explicação da coisa, conforme a atual vigência de ideias? Ou mesmo consoante a antiga conjuntura marxista-leninista? Sabe o que eu digo? O céu está em obras, só tem caído ferrugem lá das nuvens. Deus lhe perdoe, Excelentíssimo. Pergunto uma coisa, Excelência: o senhor anda a sonhar legalmente? Sim, os sonhos condizem-se na sua cabeça? É que comigo não. Acordo cheio de tiques e trejeitos. Lhe digo, por descargo de inconsciência: me converti num trejeitoso, pareço um desses xidakwas sem destino.
Analisei a sua última carta e concordo bastante com a sua esclarecida opinião: é um problema eu ser do Sul, não falar a língua daqui. Mas o facto de minha mulher ser uma legítima local me pode contribuir. Devido ao adiantado das linhas não me prolongo mais, saudando a sua firme liderança nos assuntos do Estado e as transformações capitalistas em curso a favor das massas populares.

P. S. — Em anexo, confesso: minha mulher, mesmo ela, já apresenta um comportamento um pouco-assim. Pois, uma dessas tardes ela foi assistir essas cerimônias das populações. Foi. Palavra da sua honra, Excelência. O ter ido já é grave. Mas não se limitou a assistir. Dançou, cantou, rezou. Verdade, Excelência, não foi ela que me disse, foi relatório dos seguranças. Chegou a casa era já adiantosamente noite, mostrando um cansaço muito lamentoso. Não disse nada, não comeu, não nada. De repente, soltou um suspiro e com voz que eu nunca lhe escutei disse:
Marido, esta noite mais um soldado vai explodir!
E quer saber a maior? Foi meu dito, meu desfeito. Pois, nessa noite mesmo, consagrou-se mais um acidente com um desses nação-unidenses. O tipo esfarelou-se todinho, nem poeira dele sobrou, lavado seja Deus. Como eu interpreto tais atitudes? Já me ocorreu que Ermelinda estivesse metida no assunto. Mas essa suspeita veio e foi. Não posso imaginar-me dando prisão à mãe do filho de seu anterior marido.
Que posso eu fazer? Transferir a minha própria esposa para a capital? Declarar-lhe uma doença, interná-la no posto-saúde, com cinquentena? Estou escrevendo torto por linhas direitas, me desculpe os atrevimentos. Junto com o portador desta carta seguem os cabritos que me pediu e alguns garrafões de sura. São sete bichos e vinte e cinco unidades de bebida. Confira, por favor, para evitar tentação de desvios dos quadros médios.
Mia Couto, in O último voo do flamingo

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