Naquele
dia Amâncio não exagerou na bebida, não teve tempo. Pelo meio da
tarde, no voltar da carroça, um dos da tapera saltou na esquina do
beco, endireitou a roupa e rumou para a venda. A festa lá dentro
parece que o desconcertou: ele parou na porta, fez menção de
voltar, reconsiderou. Amâncio pulou o balcão e veio recebê-lo.
—
Grande honra! Dê as ordens, major.
Sem
ligar à recepção, o homem entrou e olhou em volta, como querendo
dizer que havia gente demais. Os outros entenderam o olhar, foram se
levantando, espreguiçando, bocejando, coçando as costas, numa
tentativa ingênua de dar a entender que iam sair porque queriam e
não por estarem sendo expulsos. O homem arredou-se da porta para
desimpedir a saída, e quando a última pessoa passou, ele olhou para
o fundo da venda para ver se não restava alguém, depois chegou-se à
porta e olhou o beco, não queria ver ninguém marombando nas
vizinhanças; satisfeito com a inspeção, entrou e fechou a porta,
como se fosse o dono da venda e Amâncio um simples acompanhante.
A
conferência reservada não durou muito. As pessoas que tinham ficado
escondidas na esquina olhando de meia cara viram os dois saírem
discutindo, Amâncio falando mais, falava até enquanto passava a
chave na porta, o outro só contribuindo com frequentes inclinações
de cabeça entremeadas de frases curtas. Vendo que eles iam subir o
beco, os espias debandaram depressa, ninguém queria ser apanhado
naquele papel.
Quando
alcançaram a casa de Manuel Florêncio, o homem da tapera parou como
querendo entrar, Amâncio tomou a frente vedando a passagem. O homem
quis afastá-lo, Amâncio empurrou-o delicadamente, mas com firmeza.
Agora os papéis estavam trocados, quem mais falava era o outro, e
Amâncio concordava de cabeça, sempre conduzindo o outro pela rua, o
outro virando-se para trás quase fincando os calcanhares no chão
para não ser empurrado. Por fim ele se conformou, Amâncio parece
que venceu, eles continuaram a caminhada. Na ponte se despediram,
Amâncio voltou muito preocupado, passando por pessoas conhecidas sem
notar, não cumprimentando nem respondendo cumprimento, dando topadas
frequentes e não ligando.
Nesse
estado de espírito entrou em casa de Manuel Florêncio, entrou
bufando, pisando forte. Parou no meio da oficina, pôs as mãos nos
quadris e estourou:
— Você,
hein? Com a sua mania de independente!
Manuel
parou o serviço, olhou-o intrigado, esperou.
— Por
que você não consertou a carroça?
Então
era aquilo. Que tinha Amâncio a ver com o assunto?
— Não
consertei nem conserto. Cada um sabe o que faz — disse Manuel, e
voltou a cepilhar, desinteressado da conversa.
— Cada
um sabe o que faz, uma penca. Se você soubesse, não tinha sido
testudo.
Manuel
largou o cepilho com brutalidade, ergueu a cabeça e disse taxativo:
—
Amâncio, você manda na sua venda. Eu
mando no meu serviço. Disso não abro mão.
Amâncio
sacudiu a cabeça desarvorado, rodou na sala, parou no mesmo lugar.
— Está
brincando com fogo, Manuel. Os homens estão por aqui com você. Com
muito custo arranjei que dessem mais um prazo até amanhã. Você tem
de consertar o diabo daquela carroça até amanhã, nem que seja
preciso trabalhar de noite. Eu posso ajudar.
Manuel
olhou firme para ele, de repente soltou uma gargalhada rara, pura,
honesta; e tão forte que espantou um burro que pastava em frente.
— Está
aí uma coisa que eu queria ver — disse ele ainda rindo. — Alguém
me forçar a fazer um serviço que eu refugo. Só tem um jeito,
Amâncio. É muitos homens me sojigarem, outros segurarem minha mão
com as ferramentas e fazerem os movimentos por mim. Já pensou o
trabalho que sai?
Amâncio
experimentou nova tática:
— Somos
amigos de muito tempo, Manuel…
—
Somos. E o que é que tem isso? Você por
acaso…
— Deixe
eu falar. Somos amigos de muito tempo. Eu vim aqui pedir um favor.
Conserte a carroça para mim.
Manuel
apanhou novamente o cepilho, limpou os cavacos da fenda, falou:
—
Quanto mais escuto falar em carroça,
mais enjoo tomo de tudo quanto é apetrecho de roda. Não tenho nada
com carroça, não mandei ninguém carregar areia em carroça, quem
mandou que conserte. De mais a mais, não engulo aquela gente. E se
você é amigo mesmo, não me fale mais nesse assunto.
Amâncio
não se conformava. Insistiu, ameaçando:
— Quer
dizer que não conserta mesmo? Quer dizer que vai aguentar o repuxo?
Posso lavar minhas mãos?
Manuel
chegou à janela, cuspiu para fora, voltou.
— Vocês
são engraçados. Trabalho aqui o ano inteiro, ninguém quer saber se
estou bem ou se estou mal, se estou comendo ou fazendo cruz na boca.
De repente aparece aí um diabo de uma carroça quebrada e todo mundo
fica em cima de mim insistindo pelo conserto, azucrinando e falando
em castigo. Vou consertar carroça nenhuma. Vou escrever um letreiro
bem grande ali na parede dizendo: esta oficina não aceita conserto
de carroça. Assim, ninguém precisa perder o latim. E aguento
qualquer repuxo, sim senhor. Ora essa! Em que terra nós estamos?
Onde estão os meus direitos? Quem não deve não teme.
— Aí
é que está o seu erro. Você fala como se não tivesse acontecido
nada. Direitos? Que direitos! Quem não deve não teme! Tudo isso já
morreu. Hoje em dia não é preciso dever para temer. Por que é que
você acha que eu estou aqui pedindo, implorando, me rebaixando? Eu
devo alguma coisa? E você já me viu com medo algum dia? Você
precisa entender que não estamos mais naquele tempo…
Amâncio
parou de falar, chegou à janela, olhou o largo com interesse, como
quem se despede de um lugar antes de uma viagem demorada, com o
cavalo já na porta arreado e o arrependimento de ir já doendo por
dentro; e continuou falando para fora, indiferente à presença de
Manuel Florêncio:
— Quem
havia de dizer que Manarairema ia mudar em tão pouco tempo?
Antigamente a gente vivia descansado, sossegado, dormia e acordava e
achava tudo no lugar certo, não era preciso pensar nada adiantado.
Hoje a gente pensa até para dar bom-dia. O que foi que fizemos para
acontecer isso? Manuel, estamos mal.
Manuel
olhou-o meio comovido, meio desconfiado. Aquele lado novo não
esconderia alguma armadilha? Amâncio segurou-o pelo ombro e disse,
quase implorando:
—
Precisamos ficar muito unidos, compadre.
Vamos atravessar uma quadra de muita dificuldade.
— Mas
Amâncio, por que agora? Ou você está assustado com alguma outra
coisa?
Amâncio
baixou a cabeça e disse em voz mais baixa:
— Você
sabe o que é que eu estou dizendo. Não pensei que chegasse a esse
ponto, mas chegou. Caímos na ratoeira, e por enquanto não vejo
saída.
— Não
sei de nada. Você não está exagerando?
— Quem
me dera que fosse tudo uma brincadeira, daquelas que a gente fazia
antigamente. Mas eu estive lá. Antes não tivesse estado.
Ficaram
calados por algum tempo, absorvendo a realidade de uma situação que
eles nada tinham feito para criar e que nenhum deles sabia como
remediar.
O
silêncio do largo lembrava a tranquilidade antiga, mas vinha
misturado com uma espécie de cheiro de perigo iminente. Uma
borboleta grande azul-pomposa entrou tonta na oficina, esbarrou de
raspão na parede, pousou no cabo de uma enxó. Os dois olharam para
ela encantados, como se nunca tivessem visto uma borboleta igual, ou
talvez estranhando que ainda pudesse haver borboleta no ar.
Finalmente ela se despregou da enxó, tateou pela sala e escapuliu
para o largo como chupada pelo ar da tarde, e eles ficaram mais
tristes e preocupados.
Manuel
respirou e disse com esforço, quase espremendo as palavras:
—
Resolvi consertar a carroça.
Quebrando
uma sua praxe antiga, Amâncio abraçou-o demoradamente, quis falar
mas apenas engrolou algumas palavras que não chegaram a ser
entendidas.
José
J. Veiga, in A hora dos ruminantes
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