quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

O caminhão, centro de vida da família

Fotograma do filme As vinhas da ira

Al, os olhares correndo da estrada ao painel, disse:
Aquele sujeito não é daqui. Não falava como o pessoal do lugar. E também usava roupas diferentes que a nossa gente.
E o pai explicou:
Quando eu tava na loja de ferragens, falei com uns sujeitos que conheço. Eles diss’que esses homens só vêm pra cá pra comprar as coisas que a gente tem que vender. Diss’que eles fazem bons negócios. Mas que é que a gente pode fazer? Talvez fosse bom que o Tommy viesse conosco. Ele talvez conseguisse mais.
John disse:
Mas aquele sujeito talvez não comprasse nada, mesmo. A gente não podia trazer aquilo tudo de volta.
As pessoas com quem eu falei disseram que eles sempre faz assim — esclareceu o pai. — Eles assustam a gente, que fica sem saber o que fazer. A mãe vai ficar decepcionada. Vai ficar aborrecida e decepcionada.
Quando podemos viajar, pai? — perguntou Al.
Não sei. Vamos falar sobre isto hoje de noite, combinar tudo. Tô satisfeito que o Tom regressou. Isso me fez bem. Tom é um bom rapaz.
Al disse:
Pai, alguns sujeitos falaram sobre o Tom e disseram que ele tava em liberdade condicional. E disseram que ele não pode sair do estado, que se sair vai preso outra vez e pegar mais três anos de cadeia.
O pai teve uma expressão de inquietude.
Eles disseram isso? Acha que eles têm razão, hein? Ou tavam só brincando?
Não sei — disse Al. — Eles disseram isso e eu não disse que era irmão do Tom. Tava só ali perto, escutando.
Deus do céu! — disse o pai —, espero que isso não seja verdade. Nós precisamos do Tom. Vou perguntar pra ele. A gente já tem bastante encrenca mesmo sem isso. Espero que não seja verdade. A gente tem que resolver isso hoje de noite.
Tio John disse:
O Tom deve saber disso.
Recaíram no silêncio, enquanto o caminhão rodava pela estrada. O motor fazia muito barulho, de momento a momento ouviam-se pequenos estouros e o freio emitia sons de pancadas. Sentia-se as rodas rangendo feito madeira e um jato de vapor escapou pela abertura do radiador. O caminhão levantou uma coluna de poeira atrás de si. Galgavam a última elevação quando o sol já estava semi-oculto no horizonte, e ao chegar em frente da casa, o sol havia desaparecido. Os freios chiaram quando o veículo estacou, e o som que emitiram gravou-se no cérebro de Al — a lona dos freios estava gasta.
Ruthie e Winfield treparam nas bordas do caminhão e saltaram ao chão.
Onde está ele? Onde está o Tom? — gritaram. Depois viram-no parado perto da porta e quedaram embaraçados; caminharam lentamente em sua direção, olhando-o timidamente.
Alô, crianças! Como vão?
Responderam em voz baixa:
Oi! Bem.
E ficaram parados, um pouco afastados, olhando-o disfarçadamente, olhando o irmão mais velho que matara um homem e que esteve na prisão. E lembravam-se de como brincaram de cadeia lá no galinheiro e de como brigaram para ser o preso.
Connie Rivers baixou um dos lados da carroceria, desceu e ajudou sua mulher a descer. Ela aceitou o auxílio demonstrando muita dignidade, erguendo os cantos da boca com afetação num sorriso compenetrado e satisfeito.
Tom falou:
Vejam só, não é mesmo a Rosasharn? Não sabia que ocê vinha também.
A gente vinha andando a pé e o caminhão nos alcançou na estrada — disse ela. E acrescentou, com um ar pomposo: — Este é o Connie, meu marido.
Os dois apertaram as mãos, examinando-se mutuamente, olhando fundo um nos olhos do outro; e num instante ambos ficaram satisfeitos com o exame, e Tom disse:
Bom, vejo que vocês não perderam tempo.
Ela olhou para o chão.
Mas ainda não se vê. Não se vê nada.
A mãe me disse. Quando é que vai ser?
Ah, ainda vai demorar. Só lá pro inverno.
Tom riu.
Então ele vai nascer mesmo nos laranjais, hein? Numa dessas casinhas brancas, cercadas de laranjeiras.
Rosa de Sharon apalpou o ventre com ambas as mãos.
Tá vendo, não se vê nada. — E deu um risinho complacente e correu para dentro da casa.
A tarde estava quente e, a Leste, o horizonte ainda lançava um facho de luz. Sem aviso algum, reuniram-se todos em torno do caminhão, e o congresso, a reunião do conselho da família, teve início.
A luz do crepúsculo fazia brilhar a terra vermelha, de maneira que suas dimensões aprofundaram-se. Uma pedra, um tronco, uma construção tinham maior profundidade e mais solidez agora que à luz do dia; e todos esses objetos eram curiosamente mais eles mesmos: um tronco era mais essencialmente um tronco, elevava-se com mais firmeza da terra e destacava-se mais do campo de trigo que lhe servia de cenário. E as plantas tinham mais individualidade, não eram apenas um conjunto de cereais; e o salgueiro esfarrapado era mais ele próprio, bem diferente dos outros salgueiros. A terra também contribuiu com uma luz para a tarde. O frontispício da casa parda, sem pintura, dando para Oeste, brilhava palidamente com uma luz semelhante à da lua. O caminhão cinzento, poeirento, parado no terreiro, destacava-se magicamente àquela luz, na perspectiva exagerada de um estereoscópio.
Os homens também mostravam-se mudados ao anoitecer. Tornaram-se mais quietos e pareciam fazer parte de uma organização do inconsciente. Obedeciam a impulsos que mal se delineavam em seus cérebros. Tinham o olhar dirigido para dentro de si mesmos, e seus olhos brilhavam à luz do entardecer, brilhavam nos rostos cobertos de poeira.
A família se reunira no local mais importante, junto ao caminhão. A casa estava morta, e os campos estavam mortos; mas esse caminhão era algo de positivo, de ativo, como um princípio vital. O velho Hudson, de radiador amassado e arranhado, com glóbulos de graxa e de pó em cada canto gasto do mecanismo, com calotas de poeira substituindo as de metal, esse velho caminhão era o coração, agora, o centro de vida da família; meio automóvel, meio caminhão, tosco e desengonçado.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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